O maior guerrilheiro latino-americano
Por RICARDO RITZEL (*)
Rio Grande do Sul, 3 de setembro de 1923.
Tão logo foi avisado pelos seus batedores da aproximação rápida de dois corpos da Brigada do Oeste, o general Honório Lemes da Silva ordena que sua coluna revolucionária finalmente montasse em seus cavalos e com armas prontas para o combate.
Devido aos constantes e rápidos deslocamentos da guerrilha pampeana, o caudilho maragato havia obrigado seus homens a uma marcha de dois dias a pé, para poupar a cavalhada já bastante debilitada.
Ele sabia que teria, em breve, mais um encontro com as forças legalistas de Flores da Cunha, que vinham literalmente em seu rastro, buscando cercá-lo em uma manobra militar conhecida como “Pinça de Ferro”. Mas, como sempre, ele que escolheria onde, como e quando a batalha aconteceria.
Percebendo que o grosso da tropa do general Flores da Cunha vinha na margem oposta de um transbordante Rio Santa Maria, o general maragato decide que o primeiro combate seria contra a tropa de Nepomuceno Saraiva.
O mercenário uruguaio tinha um contingente menor que o de Flores da Cunha, estava no mesmo lado do rio e, o mais importante: ainda não havia conseguido se reunir com o regimento de Negrito Barrios, que vinha em seu reforço e também no encalço dos rebeldes gaúchos.
O local escolhido por Honório foi os ondulados campos do Ponche Verde (ou mar ao revés, como diria Jorge Luis Borges tempos depois, sobre o pampa aberto), se posicionando exatamente entre as tropas de Saraiva e Barrios.
Ordenou ainda que a 3ª Brigada Libertadora comandada por Hortêncio Rodrigues se colocasse atrás de uma coxilha próxima em posição de reserva, com objetivo de usá-la contra a retaguarda inimiga no decorrer da peleia. A mesma orientação militar foi passada para Brigada de Democratino Silveira, com ordens expressas para entrarem em combate somente ao seu sinal.
E, como todo bom guerrilheiro, a fronteira oriental estaria logo ali, bem próxima, na retaguarda, caso os planos não saíssem como previstos,
Quando as tropas legalistas de Barrios chegam ao exato local escolhido por Honório, uma carga da cavalaria maragata abre o combate atacando pelo flanco esquerdo, levando os inimigos a uma posição de defesa em um baixo do terreno, onde duas linhas de atiradores os imobilizam com fogo de pontaria.
Em seguida, a cavalaria retrocede à posição central, se reorganiza e faz uma segunda e mais poderosa carga sobre a gente de Nepomuceno que vinha pelo outro lado da coxilha. Se estabelece um verdadeiro entrevero no Ponche Verde. A típica luta de lâminas dos gaúchos, só que neste dia acrescida de fuzilaria e balaços de revólveres.
Com a tropa inimiga dividida e depois de várias horas de um combate aberto e sanguinário, a cavalaria de Hortêncio Rodrigues surge pela retaguarda das forças de Saraiva, forçando os mercenários uruguaios a se reagruparem exatamente onde os cavalarianos de Democratino Silveira os esperam, com paciência, escondidos em um capão há quase cinco horas.
Foi neste momento que, do alto de uma coxilha onde comandava as ações, Honório percebe o nervosismo e agitação, tanto no comando como na soldadesca do inimigo e, surpreendentemente, ordena que cem cavalarianos do Democratino Silveira deixem seus cavalos e, como infantes, rompam com á bala a formação defensiva dos homens de Nepomuceno.
Alertado por seus oficiais que aqueles homens não estavam com muita munição para uma ofensiva tão arriscada, Honório não vacila:
– “Que carreguem de qualquer jeito. Quem não tiver arma ou munição que carregue com os cabos de relho, com pau ou pedra. Quero todos e com toda força agora sobre o inimigo”.
O que aconteceu depois daquela temerária ordem, assim foi descrito pelo coronel Paulino Cypriano Heygert, que participou do combate e deixou suas impressões escritas para posteridade.
– “Aquele avanço foi espetacular sobre o olhar, a emoção e a ansiedade de quase toda tropa. Democratino, alto e forte, destacado a frente, a passo atirando com uma pistola semi-automática…O inimigo, certo impressionado com aquela resolução tão firme, que não demorava o ritmo do passo em sua direção, começa a se perturbar, dando sinais de fraqueza, com seus oficiais nervosos galopando para todos os lados, de todos os lados.
Neste momento, todos os guerreiros pararam para contemplar a luta singular daquela gente do Democratino. A força toda, ou quase toda, suspendeu a ação bélica, ou entreparou, para observar o inacreditável, atônicos como o próprio inimigo ante a progressão ritmada daqueles cem homens avançando e atirando a pé e de pé, mesmo abrindo uns claros dos que iam tombando pelas balas inimigas.
E não éramos somente nós, os seus companheiros, a admirá-los, surpresos: diante daquela marcha deliberada para o entrevero, notava-se o próprio inimigo os contemplando com assombro e, talvez, com admiração”.
Com a surpreendente manobra tática, Honório desmontou as defesas bélicas e morais do caudilho uruguaio e uma debandada generalizada se deu nas forças legalistas.
O problema é que a soldadesca maragata ensandecida e ávida por vingança sai atrás. Muitos conseguiram escapar, outros não. A degola foi cruenta para os capturados, principalmente se fossem mercenários uruguaios.
“Mandavam o prisioneiro dizer pauzinho e quero-quero. Quem pronunciava pausito ou tero-tero, morria como animal, como rês ao sacrifício”, comentou Antero Marques em seu livro “Do Ibirapuitan ao Armísticio”.
Foi a maior derrota do lendário general Flores da Cunha e com forças muito superiores em gente, cavalhada, armas e munição que os revolucionários do general maragato. Uma derrota que abriu as portas para o armistício e para negociação dos, até então, intransigentes positivistas gaúchos que se perpetuavam no poder há mais de 30 anos.
E, o mais impressionante dessa história, a perfeição destas manobras bélicas efetuadas pelo general Honório, dignas de um Napoleão. Ou melhor, idênticas, mesmo feitas por um tropeiro gaúcho com muito pouco estudo, sem formação militar e que nunca saiu da Pampa.
Analise por você mesmo as ações de Honório e depois as compare com as estratégias e táticas usadas pelo grande general corso. Primeiro, evitou a junção de Flores com Nepomuceno e não permitiu a junção de Nepomuceno com Barrios, dividindo por duas vezes as forças inimigas. No mesmo tempo, através de uma pequena tropa em guerra de posição, imobilizou uma massa maior, como fez com a tropa de Barrios. Depois, colocou a Brigada de Hortêncio e Democratino em posição de reserva para atender, caso necessário e no momento oportuno, duas frentes de combate. E, finalmente, na leitura perfeita do combate (ou nos 15 minutos decisivos de uma batalha, como dizia Napoleão Bonaparte), enxergá-la com clareza e aproveita-la com precisão, como na decisiva e mortal ação dos cem homens do Democratino.
Movimentos simples e, assim mesmo, geniais.
Tanto que as estratégias e táticas usadas pelo general Honório Lemes durante os combates e refregas de 23 se tornaram um livro, “A Lei Militar”, fizeram escola e se tornaram objeto de estudo no mundo inteiro. O próprio alto comando do Exército brasileiro o considerou o maior guerrilheiro latino-americano, o que não é pouca coisa.
O certo é que o general maragato criou uma nova forma de lutar com forças muito superiores. Sua guerrilha era fracionada, atacava e dispersava. Fazia o inimigo correr atrás, cansar, e lutar onde não esperava.
Contra tropas muito superiores de homens e armamentos, Honório abria espaços, atacava em várias frentes e com pequenos piquetes. Bombardeava com falsas informações a inteligência do inimigo e atacava com o grosso da tropa uma posição bem diferente.
Está estratégia militar foi chamada de Teoria do Foco e, depois, foi adotada pelas guerrilhas campesinas de Fidel Castro, Regis Derblay e, até mesmo, Che Guevara, que a citou em seus diários. E até mesmo o próprio general Giap a estudou com afinco e a empregou na incrível derrota norte-americana
no Vietnam, nas décadas de 60 e 70, durante a ofensiva do Tet.
Mas afinal, quem foi o general Honório e como ele se tornou uma lenda gaúcha e parte formadora de nosso tecido sociocultural?
Honório Lemes nasceu no dia 23 de setembro de 1864 em Cachoeira do Sul. Sua família, bastante pobre, se transferiu para Rosário do Sul quando ele tinha 12 anos, quando também começou trabalhar, ajudando o pai na lida campeira. Tinha traços indígenas mestiços e pouca estatura física.
Perdeu a mãe ainda bastante jovem e ajudou a criar um irmão menor deste matrimônio, além dos oito filhos do segundo casamento do pai.
Foi tropeiro dos 12 até seus 28 anos. Com 29 anos incompletos, em 1893, se alistou na Coluna de Gumersindo Saraiva, incorporando como suboficial da força de Manoel Machado, logo no início da Revolução Federalista. Lá aprendeu e desenvolveu seu apurado senso militar com o lendário general maragato e seu irmão, Aparício. Destacou-se pela inteligência e espírito tático. Galgou todos os postos no exército rebelde até ser aclamado coronel.
Depois do conflito, voltou a ser um simples fazendeiro na Serra do Caverá. Era extremamente ligado a família. Foi pai de cinco filhos, todos eles combatentes revolucionários de 1923, 24 e 25.
Com mais uma reeleição do velho Borges de Medeiros para presidência do estado, em 1922, e as sérias acusações de fraude eleitoral, apresentou-se novamente para o combate revolucionário.
Em março de 1923 já tinha uma tropa considerável em sua base, a Serra do Caverá, e pronta para entrar em ação. No dia 23 de março, invadiu Alegrete, entrou na cidade em triunfo sendo ovacionado pela população e, logo, aclamado general revolucionário.
Dali partiu para tomar Uruguaiana. Não conseguiu, mas abriu um dos mais aguerridos duelos de todos os tempos em solo rio-grandense que só cessou em 1925 com a admiração mútua dos dois inimigos: Honório contra Flores da |Cunha, o então intendente daquela cidade da fronteira.
Daí em diante, participou de mais de 20 combates e inúmeras refregas contra as forças legalistas durante todo conflito de 23. Perdeu algumas, venceu outras, nunca foi pego ou encurralado. Foi ovacionado em todas cidades que “visitava” com suas forças. Era admirado por homens mulheres e crianças de toda a região da Campanha e Missões. Foi determinante no honroso armistício e, por consequência, no Tratado de Pedras Altas, que reintegrou os federalistas na vida política rio-grandense.
Líder natural e carismático, impressionava tanto aliados como adversários pela sua simplicidade. Comandou, ao natural, peões e agregados, além de gente com muito mais posses e estudos, como fazendeiros, militares de carreira e profissionais liberais.
Ficou conhecido pela audácia e coragem nos campos de batalha, uma lenda. Assim como ponderação e justiça no trato político e social. Mesmo sendo chimangos…
Conta Zolá Franco Pozzobom, em seu livro “Como Dizia Honório Lemes” que, “Honório não permitia degolas e atrocidades contra o inimigo. Conta-se que um dia, um uruguaio foi preso por homens de sua coluna e levado ao acampamento maragato com sérias suspeita de ser espião do caudilho Nepomuceno Saraiva. Imediatamente foi cercado pela soldadesca no temível quadrado humano que antecedia os duelos e, é claro, as degolas. Antes de qualquer ação dos maragatos, foram interrompidos por Honório, que permitiu o oriental se explicar:
-‘Por favor, general: primeiro, avise minha família no Uruguai que fui morto. Segundo, que foi a maior injustiça. Não sou soldado, nem mercenário. Sou comerciante de gado. Terceiro, levem meus restos para o Uruguai’, suplicou altivo, mas já sentindo a faca no pescoço.
Honório se convenceu no ato da honestidade do homem e, emocionado, abraçou-o. E imediatamente ordenou que alguns homens de sua confiança o levassem em segurança até Artigas”.
Honório ainda participou da Revolução de 24, quando se aliou aos militares para derrubar o governo federal e ainda a malograda Revolução de 25, quando a aviação, o telégrafo, armamento moderno e farta munição o fizeram se render depois de cinco dias de marcha em território gaucho, no célebre encontro com Flores da Cunha e Osvaldo Aranha nas margens do Arroio Conceição, quando todas as tropas maragata e chimanga ovacionaram juntas o Rio Grande do Sul e seu povo.
O já lendário general rebelde gaúcho também foi convidado pelo seu antigo arqui-inimigo, Flores da Cunha, para lutar ao seu lado na Revolução de 30, com objetivo de derrubar a República Café com Leite. Aceitou e conspirou, mas a vida revolucionária cobrou seu preço e Honório faleceu de uma forte pneumonia antes dos primeiros tiros, no dia 30 de setembro daquele ano.
É dele a frase imortal e tão atual: “Quero leis que governem os homens e não homens que governem as leis”.
Enfim, Honório foi, junto com Flores da Cunha, um dos últimos lendários generais de cavalaria gaúchos. É nossa gente, é nossa história, é história do Rio Grande do Sul!
(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 –Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.
Bibliografia:
– De Ibirapuitan ao Armísticio; de Antero Marques; Grafosul, 1985
– Como dizia Honório Lemes; de Zolá Franco Pozzobom, Martins Livreiro, 1997
– Honório Lemos: As Revoluções de seu Tempo; de Jorge Telles, Edigal, 2012
Nota do Editor. As fotos que ilustram esse artigo são reproduções disponíveis nos museus Julio de Castilhos, em Porto Alegre, e o de Bagé e das publicaçoes de Zola Pozzobom e Jorge Telles.
Eu tive a oportunidade de conviver com vários revolucionarios e soldados provisórios ainda vivos nas décadas de 1960, 70, 80 e começo da de 90 quando morreram os utimos já bem velhinhos. Eu morava em Rosário do Sul, justamente na frente do frente do bolicho do Olavo de Freitas (o Olavo Timbauva) filho do Tiba Timbauva, irmão do Teco e do Emílio, os dois irmãos mortos no combate da Ponte do Ibirapuitan em Alegrete. Fui amigo e cliente do açougueiro Amaro Vilanova que foi preso junto com Honório Lemes por Flores da Cunha no arroio Conceição em 1925 ( esse histórico local atualmente fica embaixo da Ponte da BR 158 da Conceição trecho Rosario/Livramento). Bilico Oliveira e Claro Garcia Mota que eram soldados provisórios da Brigada Militar nos combates do cerro da Conceicao e nos combate da Corte no Saican frequentavam nossa casa, amigos de meu pai. O capitão Cela (Marcelino Silveira Goulart) secretário e tesoureiro da Coluna Invicta Revolucionária do Honório Lemes e também cunhado do Leão do Cavera’ (casado com Adalgisa, irmã do Cela) muita informação me deu em 1988. Também muito conheci o Merquiades Ávila, o degolador justiceiro da coluna, já louco, nos anos sessenta que morava no fim da vila Progresso junto da curva do rio onde termina a hoje praia das Areias Brancas.
Meu avô era maragato e sempre falava do Honório Lemes…
E quanto a degola…tem muitos políticos hoje que a mereciam…
Muita lenda e propaganda ao redor do assunto. Guerrilha surgiu como nome das tácticas utilizadas pelos espanhóis contra Naooleao, porem é antiga como o tempo.
Deve ter recebido algum tipo de formação informal, conhecia bem o terreno (ou tinha gente que) e não lhe faltava inteligência.
Dai vem as imprecisões. Giap foi importante na Primeira Guerra da Indochina. Na Segunda era mais ‘simbólico. Era contra o Tet. Alas, vietcong levou uma pemba, deixou de ser uma força a ser considerada e abriu caminho para o exercito do norte/chineses assumirem o controle total. Problema americano foi politico, domestico.
Guevara tentou usar suas teorias na África e na Bolívia. PCdoB tentou um foco no Araguaia. Não rolou.
Militares hoje em dia pensam nestes conceitos principalmente na eventual defesa da Amazônia. Centro de Instrução de Guerra na Selva, Forças Especiais, etc. Para quem ainda não deu por conta, Rondônia é 35% maior que o Uruguai. Criar um Sudão do Sul por lá não é impossível, apesar de ser pouco provável.