ARTIGO. Ricardo Ritzel, 16/17 de novembro de 1926. Eis aí “a noite mais longa da história de Santa Maria”
A Batalha de Santa Maria (2) – vitória da Brigada e derrota dos tenentistas
Por RICARDO RITZEL (*)
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A população que conseguiu dormir naquela noite de 15 de novembro de 1926, acordou alarmada, no dia 16. Famílias inteiras começaram a buscar abrigo em porões de suas residências ou saíram em fuga descontrolada para a periferia da cidade. Seguiu-se a outro tiro de artilharia, e mais outro, e assim sucessivamente. Relembrando: Santa Maria foi acordada com toques estridentes de clarim. E os primeiros tiros de canhão foram disparados na frente do 7º Regimento de Infantaria, nos altos da Rua Doutor Bozzano. Os alvos eram posições legalistas no Centro da cidade.
O major Aníbal Barão, em estado de alerta desde o dia anterior, imediatamente começa a executar seu plano de defesa e ordena seus soldados a assumirem as posições pré-determinadas.
Grupos de batedores rebeldes com lenços vermelhos amarrados ao pescoço começam a patrulhar as ruas próximas aos quartéis para identificar as posições da Brigada.
Algumas dessas patrulhas de vanguarda chegam próximas à Praça Saldanha Marinho, no Centro da cidade, e ficam cara-cara com um piquete de cavalaria brigadiana, que os fazem retroceder a bala até a Praça Saturnino de Brito.
Estava estabelecida a linha de frente do combate.
Ela começa na Rua Sete de Setembro, no lado norte de Santa Maria, passa por toda Avenida Rio Branco até a primeira quadra da Rua Doutor Bozzano, entre a Rua do Acampamento e Rua Floriano Peixoto (hoje Calçadão), depois indo até Avenida Ipiranga (atualmente Avenida Presidente Vargas), e dali se estendendo para o lado sul, até a Rua Gaspar Martins (hoje Avenida Medianeira).
Naquele momento, a Brigada Militar tinha a seu dispor um efetivo de 287 homens, mas somente 200 estavam armados e municiados para a luta. O restante guarnecia a retaguarda ou prédios públicos estratégicos.
Não era ainda 6h15 da manhã e o major Barão já estava estabelecido em seu posto de comando na esquina da Rua Doutor Bozzano com Rua do Acampamento, em um prédio ao lado do antigo Banco do Comércio (onde hoje está erguido o Edifício Província).
Os rebeldes possuíam entre 700 e 800 militares fortemente armados, 12 canhões e farta munição.
A batalha começou uma hora depois, às 7h15, “com grande fuzilaria, metralhadoras e mais balas de canhão”, conta Romeu Beltrão em seu livro histórico.
Na Avenida Rio Branco, entre a Rua dos Andradas e a Rua Silva Jardim, estava o ponto de luta mais intenso e também o alvo mais procurado pela artilharia rebelde.
E as horas do dia foram se sucedendo sem grandes mudanças, tanto na linha de frente, como também quantidade de tiros disparados de lado a lado da peleia. E não foram poucos.
Com a chegada da noite, a chuva, que durante todo o dia fora uma garoa, se transforma em um aguaceiro torrencial. A temperatura despenca atipicamente para aquela época do ano e uma névoa úmida deixa a cidade com visibilidade mínima.
Os rebeldes posicionam suas baterias de artilharia na frente do 7º RI, ao lado do 5º RAM e um estratégico canhão avançado bem à frente da Igreja do Rosário, na Rua Silva Jardim.
Seus 12 canhões passaram todo aquele dia 16 de novembro bombardeando posições da Brigada Militar ao longo da linha de frente legalista. Em especial, vomitaram petardos na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Silva Jardim, onde uma encarniçada defesa estava sendo realizada pelo capitão Jorge Pelegrino Castiglione, conforme pesquisa de Hermito Lopes Sobrinho, em seu livro “A Revolta em Santa Maria”.
Comentários de jornais da época, como também vindos da tradição oral da cidade, falam de infiltrados da Brigada Militar dentro das guarnições federais que sabotaram os equipamentos de mira da artilharia dos militares, explicando o grande número de tiros a esmo e sem direção disparados por uma tropa bem treinada e preparada para luta.
À meia-noite, ajudado pela penumbra e a névoa da chuva, um plano militar estava começando a ser executado. A sinfonia bélica foi acrescida de fuzis, revólveres e pistolas para todos os lados e vindo de todas as direções. Os tiros de canhão se intensificam ainda mais, junto com os estampidos contínuos e secos das metralhadoras rebeldes. O nível de tensão se eleva ao máximo entre combatentes e a população.
A manobra dos tenentes visava despistar a primeira tropa rebelde, que naquele momento já estava em retirada, exausta, com quase 24 horas de luta intensa.
Nestas primeiras horas da madrugada, com o endurecimento da luta, corre um boato entre a população civil que a cidade seria destruída a canhonaços e sua gente arrasada se não abandonassem o perímetro urbano.
Uma onda de histeria e desespero toma conta das pessoas mais sugestionadas. Acontecem tresloucadas correias de famílias inteiras, principalmente, para o Campestre e a vizinha São Martinho nos altos da serra. Outras, mais prudentes, se escondem em porões ou em barrigadas feitas com móveis domésticos.
Beltrão, em suas memórias, relata que professores e alunos internos do Colégio Santa Maria já estavam deixando o prédio, que fora atingido por várias granadas durante todo dia, quando, em tempo, chega o tenente João Scherer, da Brigada Militar, e os convence a voltar e se afastar dos perigos que vinham de todos os lados nas ruas próximas a tradicional escola marista.
E os rebeldes sustentam uma fuzilaria intensa e bombardeios contínuos por mais quatro longas horas, mas também continuam com seu plano de fuga e reagrupamento em busca de uma guerra de mobilidade, típica da guerrilha sulina e inspirada na Coluna Miguel Costa/Prestes.
Às 3h, uma segunda tropa sai da cidade em busca da fronteira. Pouco antes das 4h, os últimos rebeldes e seus comandantes já haviam partido de Santa Maria.
Neste mesmo momento, o major Barão, percebendo a estranha movimentação dos militares rebeldes, ordena que uma patrulha comandada pelo tenente Scherer fosse averiguar as posições inimigas. Antes das 5h daquela manhã de 17 de novembro, o tenente da Brigada e mais 22 homens chegam ao 7º RI e encontram uma bandeira branca estendida sobre o portão.
Estava acabando a noite mais longa da história de Santa Maria.
Ao chegarem ao prédio do regimento, um gesticuloso coronel Enéas insiste em sinalizar sua condição de prisioneiro e, é claro, deixar bem nítida sua boa intenção com os combatentes que se aproximam.
Ás 9h em ponto, o mesmo coronel se apresenta no posto de comando de Aníbal Barão e informa a retirada completa dos rebeldes da cidade. Pouco depois, recebe de volta o comando de seu quartel e dos praças que não aderiram ao movimento.
Naquela manhã, o contingente inteiro da Brigada Militar desfila pelas ruas centrais da cidade entre vivas e aplausos da população santa-mariense. Mulheres lançam rosas e jasmins sobre a tropa vitoriosa que retorna ao quartel.
A falta de informações seguras e a absoluta exaustão dos oficiais e soldados da Brigada impedem a perseguição aos revolucionários tenentistas.
A retirada de Santa Maria também não ocorre como havia sido planejada pelos tenentes Etchegoyen. Não havia apoio da guarnição de São Gabriel, nem tampouco de Bagé. Todos efetivos rebeldes das duas cidades estavam presos ou mortos.
A retirada se transforma em uma debandada com vários relatos de saques e depredações.
Conforme Romeu Beltrão, “começou, então, uma verdadeira romaria ao Hospital de Caridade em busca de informações sobre mortos, feridos e desaparecidos”.
O total de baixas na Brigada Militar foi de dezessete homens fora de combate, sendo três mortos e quatorze feridos. Os rebeldes tiveram vinte oito baixas, sendo seis mortos e vinte dois feridos. Na população civil, foram quatro mortos e doze feridos, excluindo os que não procuraram socorro médico por terem somente ferimentos leves.
Os prejuízos financeiros foram enormes e mais de setenta prédios foram atingidos ou danificados por balas de canhão e tiros de fuzis.
Não podendo dominar a cidade, os militares rebeldes tomaram o rumo da Bacia do Prata e, ao passar por Caçapava do Sul, nos campos do Seival, foram interceptados por forças estaduais lideradas por Osvaldo Aranha, onde foram obrigados a se envolver em outro violento combate.
Só que, desta vez, levaram a melhor, deixando até mesmo o líder inimigo ferido no campo de batalha e as portas abertas da fronteira para a “Coluna Relâmpago”, como ficaram conhecidos.
Quanto aos objetivos políticos e militares dos rebeldes, como as pontarias de seus canhões, também não atingiram o alvo. O exílio foi o destino de todos.
*Fim da 2ª parte. A 3ª e última parte (depoimentos de quem presenciou a batalha santa-mariense) será publicada no próximo dia 27 de junho.
(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 –Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.
Muito bom. Cabe lembrar que a população do município (que tinha área maior) era algo como 70 mil habitantes (censo de 1920, detalhe: 30 mil homens e 40 mil mulheres ). Parecido com Venâncio Aires ou o Alegrete hoje em dia.