CRÔNICA. Orlando Fonseca e uma alegoria com a Primavera (sim, a estação do ano) como referencial

Primavera

Por ORLANDO FONSECA (*)

E a primavera, gente, quando virá?

Talvez porque, morando na região mais meridional do Brasil, estamos acostumados com as Quatro Estações bem demarcadas. No norte e nordeste do país, a população percebe uma só, com variações tais como período de chuva, período de estio. Todo mundo sabe por lá, ou ao menos dança ao som do xote: “Mandacaru quando fulora na seca/ é sinal que a chuva chega no sertão”.

Primavera, primavera mesmo, a considerar os versos cantados por Luiz Gonzaga, não dá para conferir. Se bem que o Ministro interino da Saúde considera que existe inverno naquela zona tórrida, próxima do equador. Vai saber. Mas o que eu queria mesmo falar, nesses tempos de reclusão forçada por causa da pandemia, não era exatamente das condições do tempo, ao sabor das mudanças climáticas sazonais e suas intempéries.

Falo, na verdade, de uma outra Primavera. Não menos poética do que aquela que se esparrama pela paisagem trazendo cores e aromas de puro encanto natural. Uma primavera também capaz de trazer ventos de mudança, a favor da vida, em busca de justiça, em defesa da democracia e dos direitos humanos.

De tempos em tempos, as populações, as comunidades, principalmente em sua porção de juventude, saem às ruas, elevando ao ar palavras de ordem, tentando expressar seu desejo de novos tempos, gritando mais alto que as bombas de efeito moral das forças de repressão.

Há poucos anos, tivemos a Primavera Árabe, em defesa da democracia naqueles países marcados por uma tradição de regimes totalitários. Foram ecos de outras estações, como a Primavera de Praga, no distante ano de 1968, em que a população da Checoslováquia passou a pressionar por mudanças, as quais, no entanto, foram sufocadas pela intervenção da antiga União Soviética, oito meses depois.

Atualmente, a mídia internacional tem denominado de Primavera Americana, o movimento de protestos pela morte do jovem negro George Floyd. Estação de movimentos populares que se espraiaram mundo afora, e depois de três semanas de manifestações nos Estados Unidos, os militantes contra o racismo e contra a violência policial começaram a ver resultados.

O governador de Nova York iniciou um processo de reestruturação de todos os departamentos de polícia do estado. Também assinou uma lei que torna ilegal o uso de técnicas de estrangulamento e derruba o sigilo sobre processos disciplinares de policiais.

Mas a minha indagação inicial refere-se ao nosso Brasil, que já foi, ostensivamente, abençoado por Deus. Bonito por natureza ainda continua, mas há tantas coisas feias e sujas acontecendo nesta república que fica difícil perceber luzes, cores, harmonias de formas e perfumes. Uma década de grandes transformações culturais, os anos 60 do século passado, foi interrompida por uma ditadura.

Depois de duas décadas de exceção, arbítrio, perseguições políticas, iniciamos um período de redemocratização com a Nova República, em 1985. Desde então claudicamos, numa interminável convalescença, que ora apresenta picos de melhora, ora nos afunda em depressão de toda ordem, política, econômica e cultural.

“Quando entrar setembro/E a boa nova andar nos campos”, eram os versos primaveris e proféticos de Beto Guedes, quando, em 1979, o povo andava pelas ruas pedindo anistia, fim da censura e direito de escolher os representantes políticos – como é o normal em uma democracia.

No fundo era mais uma esperança do que uma certeza. Mas é assim que a juventude costuma se reunir em um corpo só para trazer os cheiros da nova estação para as ruas e campos, corações e mentes.

“A lição sabemos de cor/ Só nos resta aprender”, valho-me dos versos do compositor mineiro, para alimentar a esperança de vislumbrar este novo tempo, para além das nuvens escuras, o tempo carregado de uma névoa pestilenta, de desgovernos e desesperanças. Uma primavera que precisa vir junto com a vacina contra o coronavírus.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: A foto (sem autoria determinada) que ilustra este artigo foi extraída do blog “Curiosos no Mundo” (AQUI)