Para além dos umbigos
Por LUCIANO DO MONTE RIBAS (*)
Nossas reações a determinadas coisas dizem muito sobre quem somos e quais são os nossos limites. E, nesses tempos onde os babacas perderam a vergonha de assumirem suas desumanidades, isso parece ser ainda mais verdadeiro.
Por exemplo, eu considero estarrecedor descobrir que os britânicos tinham, até o ano de 2015, uma dívida referente a um Slave Compensation Act (Ato de Compensação Escravocrata, em tradução livre). A informação está no texto “Reino Unido endividou-se para proteger escravocratas” do site Outras Palavras (link no final do texto), que registra que o débito foi contraído em 1837 e se destinava a indenizar escravagistas pela perda de suas propriedades – no caso, “propriedades” eram homens, mulheres e crianças negras escravizadas e obrigadas a trabalhar até a morte para seus senhores.
Caso as três ou quatro pessoas que costumam ler os meus textos não tenham se dado conta, vou ressaltar: os britânicos tinham uma dívida há 180 anos porque sua elite econômica se sentiu lesada por seres humanos conquistarem o elementar direito à liberdade e, pasmem, ninguém foi capaz, já em pleno século XX (quando a dívida começou a ser paga), de simplesmente declará-la imoral, desumana e sórdida.
Não pensem que no Brasil foi muito diferente. As leis conhecidas como do “Ventre Livre” e dos “Sexagenários” estabeleciam mecanismos de indenização aos escravagistas, muito bem “justificados” por pareceres dos bacharéis e doutos de plantão. Segundo a primeira, uma criança poderia render 600$000 a quem lhe escravizava se, aos 8 anos, fosse libertada; já para a segunda um homem renderia entre 900$000 e 200$000, dependendo da idade (as mulheres, “obviamente”, tinham um valor menor: precisamente 25% a menos).
Voltando ao primeiro parágrafo, é possível que alguém ache “normal” essa indenização e a justifique com meia dúzia de “afinais”. Provavelmente, o mesmo tipo de gente que papagaia que as cotas raciais são absurdas e que a nossa sociedade não tem nada a reparar. Afinal, “a culpa não é minha”, como costumam dizer, sem tentarem enxergar além dos próprios umbigos. O que nos leva ao assunto desse texto: do que os autodenominados “cidadãos de bem” são capazes para garantirem seus privilégios.
A resposta mais eloquente a essa dúvida ocupa o Palácio do Planalto e nos presenteia quase todos os dias com impropérios, obscurantismos, inaptidões e desprezos. Sim, nossas “elites” (secundadas por um bando que imagina fazer parte delas) são capazes de apostar no idiota violento da aldeia se ele estiver disposto a fazer o serviço sujo, mesmo que isso traga o risco de uma ruptura da civilização e o preço possa ser a morte de milhares de pessoas, como o descaso do néscio mor com a pandemia tragicamente ilustra.
Por “serviço sujo”, aliás, deve ser entendida até mesmo a promoção de um novo tipo de escravidão, onde trabalhadores precarizados são “promovidos” à categoria de “empreendedores”. O movimento dos entregadores de aplicativos ocorrido nessa semana, o “Breque dos Apps”, chama a atenção para isso e, ao mesmo tempo, demonstra como novas formas de organização dos excluídos e dos marginalizados estão surgindo. Talvez ainda demore um pouco e, provavelmente, não ocorra uma ressurreição dos movimentos sociais como os conhecíamos na Modernidade, mas o jogo está muito longe do fim e isso já é um grande alento.
Se o avô de meu avô foi um escravagista (e, no meu caso, infelizmente essa não é apenas uma frase retórica), não tenho “culpa” pelo ato em si. Mas, como indivíduo e como parte da sociedade, tenho, sim, responsabilidade por tudo que adveio da instituição criminosa abolida há apenas 132 anos.
Tendo ou não essa vergonha na história familiar, pessoas brancas precisam compreender isso de uma vez por todas e não podem se eximir da defesa de políticas públicas, legislações, ações e mecanismos que ajudem a compensar quem descende dos que sofreram com a escravidão.
Não votar em quem ajudou Bolsonaro e sua corja a chegarem ao poder é uma forma eloquente de demonstrar isso.
(*) Luciano do Monte Ribas é designer gráfico, graduado em Desenho Industrial / Programação Visual e mestre em Artes Visuais, ambos pela UFSM. É presidente do Conselho Municipal de Política Cultural e um dos coordenadores do Santa Maria Vídeo e Cinema, além de já ter exercido diversas funções na iniciativa privada e na gestão pública.
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Observação do autor, sobre a foto: passeata do “#EleNão”, em 2018, no centro de Santa Maria. Embora não tenha sido possível barrar a eleição de Bolsonaro, o movimento já demonstrava que a resistência seria antirracista e feminista..
Link para a matéria: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/reino-unido-endividou-se-para-proteger-escravocratas/
Em resposta ao Felipe Tavares: que bom que a juventude predomina na esquerda, pois é um sinal de que o futuro pode ser bem melhor do que essa degradação social que estamos vivendo.
As “guriazinhas” serão a salvação da humanidade.
Observação do leitor sobre a foto: Na esquerda só tem guriazinha.
Discordo apenas da comparação da situação dos trabalhadores de aplicativos com a de escravizados. Trabalhadores precarizados, sem direitos nem garantias sociais, é um retrocesso civilizatório à situação da época da Revolução Industrial, anterior às conquistas dos movimentos operários, mas não pode ser comparada à desumana situação de quem vivia submetido ao regime escravocrata, sujeito à todo tipo de violência, sem ter a quem recorrer.acho que não deve evitar essas comparações para não banalizar o maior crime já cometido pela humanidade.
Kuakuakua! Pessoal do século XIX deveria ter olhado na bola de cristal e não pedido indenização porque séculos depois não seria moralmente aceitável.
Culpa histórica é assunto ideológico, não perco tempo discutindo religião dos outros.
Voto é ato individual e personalíssimo. Urna não traz uma tela ‘agora escreva um textão justificando as escolhas’.