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ARTIGO. Ricardo Ritzel analisa livro-reportagem, de Nilson Mariano, que aborda Um tal de Adão Latorre

Adão Latorre era o temido “Degolador Maragato”, da Revolução Riograndense de 1923. Ilustração de Waner Biazus baseada em foto de época. Feita em papel Canson (50cm x 40cm) e pintada com Aquarela, Nankim e lápis Aquarela

Luzes sobre Adão Latorre

 Ricardo Ritzel*

A História e o Jornalismo sempre andaram de mãos dadas trocando olhares apaixonados. E assim, como eternos namorados, se tornaram ciências afins. Tanto que se utilizam dos mesmos pressupostos para viverem plenamente: pesquisa minuciosa, fontes fidedignas, entrevistas com testemunhas e especialistas, acareação dos dados e personagens, o uso do contraditório e, sim, muita, mas muita leitura mesmo.

E é com esta mesma paixão que o jornalista Nilson Mariano faz o histórico de uma verdadeira lenda do período revolucionário gaúcho e lança luzes sobre a vida e a morte do tenente-coronel Adão Latorre, o mais famoso degolador da Revolução Federalista de 1893.

O resultado é o magnético livro-reportagem “Um tal de Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893”, lançado em março de 2020 pela Editora Edigal, de Porto Alegre.

“Apesar da aparência de peão, era major dos federalistas rio-grandenses, coronel do Partido Blanco uruguaio e capataz das imensas estâncias dos Tavares. O cabo de prata da faca virilheira assomando sobre a fivela da guaiaca, tinha uma barba onde se avantajava o cavanhaque de fios grisalhos a sinalizar os seus 58 anos. Pisou na terra endurecida com as botas de solado desgastado, o couro bastante esfolado devido ao atrito contra o metal do estribo das montarias. O andar era meio desajeitado, característico de quem mais cavalga do que caminha.

Fotografia  Divulgação / Editora Edigal

Era daqueles homens que bastava a presença num recinto para os outros perceberem que algo de funesto poderia ocorrer. Não carecia ameaçar, gesticular ou ostentar armas para infundir respeito ou medo. Se Latorre aparecesse, melhor silenciar e esperar”, escreveu.

Adão Latorre, ou Adán de La Torre, foi uma figura complexa e também polêmica desde sua participação no mais sanguinário dos conflitos revolucionários do Rio Grande do Sul. Mas sua vida não se resume a simplesmente passar sua lâmina em gargantas alheias durante as refregas gaúchas, tanto deste como do outro lado da fronteira.

Negro, descendente de escravos, ele nasceu no povoado de Cerro Chato, em Rivera, Uruguai, e se tornou famoso pelas duas profissões que exerceu durante toda sua vida: peão de estância e soldado.

Como trabalhador rural, foi homem de confiança dos generais Joca Tavares e Aparício Saravia, chegando a ser capataz de um e agregado do outro. Tinha maestria no uso de lâminas. Nasceu e morreu em um lombo de cavalo, e era tal o domínio que exercia sobre o animal que, cavalo e cavaleiro pareciam um só ser.

Como soldado, Aos 16 anos, alistou-se nas tropas do Partido Nacional, os blancos. Dois anos depois já era sargento e, antes de completar 25, ganhou a insígnia de capitão. Pouco depois, major.

Em fevereiro de 1893, quando o general Joca Tavares ultrapassou a fronteira brasileira para deflagrar a revolução, ele já ostenta com orgulho o posto de tenente-coronel. O que não é pouca coisa, mesmo para aquela época, indicando ser um guerreiro implacável e bastante diferenciado em combate.

Foi aí também que Latorre encontra seu destino e participa de uma macabra execução de castilhistas, em Hulha Negra. Entrou para história como o maior degolador do conflito. O mais notório. E, pior, surge também a lenda que ele, sozinho, teria passado a faca no pescoço de 300 prisioneiros. Tarefa que durou toda uma noite e a fez, ensandecido, entre goles de aguardente.

E aí que entra a grande sacada de Mariano neste livro e traz a tona seu lado jornalista: ele aproveitou informações de uma entrevista que fez, em março de 1993, com o último filho vivo de Adão Latorre, João, que tinha então 103 anos, descortinando um outro lado do líder revolucionário. Inusitado.

“Era bom para nós, melhor é impossível“, sintetizou o remanescente da família. Mais: era estimado pelos vizinhos, sempre pregando a boa convivência, e exibia imensa ternura pelos animais.  Não aceitava que seus filhos caçassem ou engaiolassem passarinhos. Se encontrasse um estilingue, destruía na hora, além de repreender os meninos. “O pai nos dizia que os animais têm o direito de viver”, recordou João Latorre na mesma entrevista reproduzida no livro.

Outro grande acerto do autor foi buscar saber quem era e o que fazia a vítima mais famosa do personagem: o coronel castilhista (ou pica-pau), Maneco Vargas. E nos traz informações que separam a lenda da história, delineia a propaganda política e marca a fronteira com os acontecimentos, fatos e personagens reais.

A faca de prata de Adão Latorre. Fotografia Museu Dom Diogo de Souza

Nilson Mariano também faz questão de deixar muitas dúvidas no ar. Afinal, até hoje esse período histórico apresenta, no mínimo, duas versões para os mesmos fatos. E ele mesmo adverte no prefácio: “Para o esclarecimento dos casos mais nebulosos, procurou-se o maior número disponível de fontes e versões. As sem origem comprovada ou que pareceram duvidosas foram descartadas, preferindo-se o vazio ao risco de uma inverdade. Em certas ocasiões, como ensina Marc Bloch, foi preciso confessar que não se tinha a resposta.”

E assim fazendo, o autor opta pela melhor história. E também pelo melhor jornalismo.

Enfim, Nilson Mariano expõe tanto o carrasco quanto a vítima a uma narrativa livre da contaminação política que dominou estes pagos por várias décadas e até hoje está presente na vida dos gaúchos. E isto nos faz nos compreendermos melhor os acontecimentos e, por consequência, os dias de hoje.

A história é sempre muito atual.

Nilson Cezar Mariano é jornalista e mestre em História. Entre os livros que escreveu, “Operação Condor”, publicada em espanhol e português. Foi repórter da Folha da Tarde e Zero Hora. Traz também na bagagem, um Prêmio Esso de Jornalismo, um Prêmio Wladimir Herzog e duas distinções da Sociedad Interamericana de Prensa. É “Cidadão Emérito de Porto Alegre” e “Jornalista Amigo da Criança” (Andi/Unicef). Tem muitas séries de reportagens históricas publicadas, como A Face Desconhecida da Legalidade, de 2011, em parceria com Dione Kuhn, e sobre o imaginário nos locais de batalhas da Guerra do Paraguai, em 2002.

E, iniciando, só vais deixar de ler no último ponto. Boa leitura!

*Ricardo Ritzel é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 – Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

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Um Comentário

  1. Philip L. Graham, falecido no começo da década de 60 e ex-Washington Post, dizia que ‘o jornalismo é o primeiro rascunho grosseiro da historia’. Obvio que muita agua passou debaixo da ponte, Michael Goldfarb, outro jornalista, tem um podcast com este nome. Vamos combinar que alguns jornalistas resgataram a história da torre de marfim da academia e popularizaram o assunto, retirando os ranços ideológicos e colocando rosto nos principais personagens. Peninha e Leandro Narloch são exemplo. Há, obviamente, quem torça o nariz e a estes se sugere dar um nó na canela e sair correndo campo fora.
    Dito isto, é uma obra que falta para a aldeia, a continuação da Cronologia Histórica.
    Bueno, o desenho é muito bem feito e dá um ar sinistro ao personagem. ‘Era daqueles homens [..]’ é afirmação subjetiva que entra em choque com o depoimento do filho. Duvido também que os amigos e admiradores tivessem a mesma opinião. É o risco, examinar sem observar o contexto. Do risco vem o alerta, há livros por aí que (de todos os matizes) que não passam de propaganda, muitas conclusões com poucas evidencias (jornalistas ganham a vida de diversas formas, acontece em todas as profissões; medico que trabalha em clinica de aborto clandestina sabe o que está fazendo).
    Muito bom como de costume.

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