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Interrupção da gravidez, o exemplo que vem da Argentina e do Uruguai – por Michael Di Giacomo

Ali, a matéria “é tratada exatamente como deve ser, questão de saúde pública”

A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou, na última quinta-feira, dia 10, um projeto de lei que prevê o direito às mulheres e “outras identidades com capacidade de gerar” (em tradução livre), de acesso à interrupção voluntária da gravidez.

A lei modifica artigo do Código Penal Argentino que criminaliza a pessoa gestante que incorrer no ato com a aplicação de uma pena de prisão que pode ir de um a quatro anos.

Na nova redação, a pena de prisão, agora pelo período de três meses a um ano, somente poderá a ser aplicada à mulher ou pessoa que, voluntariamente, a partir da 15ª semana de gestação, consentir ou causar motivos para realização da interrupção.

A lei argentina é bastante complete pois, desde o início da solicitação da interrupção até o período posterior, prevê uma extensa estrutura estatal de acompanhamento à pessoa gestante, com cuidados contínuos à saúde da referida.

No mesmo sentido, elenca uma série de responsabilidades às províncias, aos municípios e ao Estado Nacional, na promoção de políticas de saúde sexual e reprodutiva, educação sexual integral, e estabelece o fortalecimento das políticas públicas de prevenção das gestações indesejadas.

Um dado bastante positivo é a previsão da inclusão, por parte de entidades de saúde, tanto na área pública quanto na área privada, de cobertura integral à interrupção da gestação, e devidamente integrado ao Programa Médico Obrigatório – PMO. Sendo incluídos, entre outros, os diagnósticos, os medicamentos e as terapias de apoio. Ou seja, a matéria é tratada exatamente como deve ser, uma questão de saúde pública.

O debate no meio social argentino sobre ao direito à interrupção da gravidez não é recente. Na verdade, o primeiro projeto de lei a tratar do tema foi protocolado na Casa Legislativa em 2007.  Desde então, nos anos seguintes, 2010, 12, 14, 16, 18 e 2019, foram realizadas novas tentativas de aprovação da lei, com êxito somente em 2018, porém, a proposta foi derrotada no Senado.

O tema, sem dúvida, é muito polêmico, nem por isso falta coragem aos parlamentares argentinos de colocá-lo na ordem do dia. Um dos resultados mais gritantes da falta de uma legislação, que garanta o referido direito às mulheres e às pessoas gestantes, é o grande número vítimas causado por interrupções realizadas de forma clandestina.

Conforme o Jornal El País, desde 1983, mais de três mil mulheres morreram em decorrência de complicações causadas por interrupções clandestinas. Isso comprova que, seja por qual motivo for, a criminalização do ato em si não impede que as pessoas o façam. E tratar a matéria como se fosse algo alheio à realidade, uma abstração, é um ato desumano e irresponsável.

Um exemplo positivo sobre a descriminalização da interrupção da gravidez pode ser visto no Uruguai. Em outubro de 2012 o país latino-americano mudou sua legislação que criminalizava o ato e passou a garantir o seu exercício, enquanto direito, até a 12ª semana de gestação e, no caso de a pessoa ter sido vítima de estupro, até a 14ª. A partir de então, o país, que tinha uma média de 33 mil interrupções clandestinas realizadas por ano, passou a contar com um média de 9.500 no decorrer do mesmo período.

A lei uruguaia prevê que a requerente realize uma prévia consulta médica com exames de rotina, seja atendida por uma equipe médica formada por ginecologista, psicólogo e assistente social. Após esse périplo, a mulher aguarda um período de “reflexão” de cinco dias para ter plena certeza que irá se submeter ao procedimento.

No Brasil, conforme publicado na revista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz –  devido à criminalização do ato no país, o perfil de mulheres com maior risco de óbito, causado por complicações na interrupção da gravidez, é formado por pessoas negras, indígenas, de baixa escolaridade, sem companheiro, e moradoras das regiões distantes dos grandes centros do país, sendo uma grande parcela de adolescentes com menos de 14 anos.

Não é preocupante?

Penso que os fundamentos da decisão de uma interrupção de gravidez são, na maior parte das vezes, de ordem subjetiva e isso deveria ser respeitado. E quando a matéria explicita questões de saúde pública, de risco à vida da gestante, e o motivo que envolve a decisão tem relação direta com a cultura de um país que segrega pessoas hipossuficientes economicamente, tenho convicção de que a criminalização do ato é uma estupidez digna de um pensamento mais apropriado ao período medieval, à idade das trevas.

Somente uma pessoa gestante, em acordo com seu companheiro, se for o caso, ou por pura deliberalidade, tem condições e legitimidade para saber o que é melhor para si. É por esse viés que nossos parlamentares, na sua grande maioria homens, deveriam tratar o tema.

No entanto, todo esse contexto de falta de enfrentamento dos fatos, somente reforça a clandestinidade do procedimento como sendo a única opção. Uma realidade que no Brasil iremos vivenciar ainda por muito tempo.

(*) Michael Almeida Di Giacomo é advogado, especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público. O autor também está no twitter: @giacomo15.

Observação do editor: a foto (sem autoria determinada) que ilustra este artigo foi reproduzida de reportagem da revista Carta Capital (AQUI)

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