Tempos inversos – por Marta Tocchetto
“Apesar das evidências, é assustador constatar que o monstro possui aliados”
“Os tempos são inversos. Vivemos a proclamação do ódio, da desumanidade, da deseducação, da destruição, da degradação, do mal, da dor, da morte, do obscurantismo, da anticiência, do lucro a qualquer custo, da desinformação, da política da fome, da desigualdade, da injustiça”.
A conta bate à porta do Brasil – mais de 400 mil mortos! Um número inimaginável. Te convido a fazer um exercício. É como se daqui a Pelotas, considerando o itinerário do ônibus, desaparecessem as populações das cidades de Santa Maria, São Sepé, Caçapava, Santana da Boa Vista e Canguçu. Confesso, o exercício continua sendo difícil! A tragédia desafia nossa capacidade de mensuração. Apesar da grandiosidade, o rastro de morte continua fazendo vítimas e destruindo histórias. O Brasil vive diversas catástrofes – sanitária, ambiental, social, econômica, moral, ética, política. O caos nos leva dia a dia para um abismo sem fim. Estamos diante de um monstro de muitas cabeças. O coração da besta só será alcançado após as cabeças serem atingidas. A luta exige inteligência e união. Apesar das evidências, é assustador constatar que o monstro possui aliados.
A pandemia segue ceifando vidas e a estratégia do governo, há mais de um ano, é a mesma – minimizar, ignorar, desqualificar. Não fosse a vacina aplicada homeopaticamente, quase nada teria sido feito para reduzir a transmissão e o número de vítimas. Ao contrário, o negacionismo continua imperando. Falta apoio financeiro às empresas para evitar demissões e falências. A população mais vulnerável se mantém desassistida. Cresce o incentivo aos tratamentos e medicamentos sem eficiência. O populismo barato e as atitudes ultrajantes estimulam as aglomerações e os ataques à democracia. A fome extrema cresce não apenas nas estatísticas. Ela assombra e agrava o sofrimento de uma população abandonada à própria sorte.
Falidos, desempregados, famintos, doentes, mortos – resultado de uma política de desesperança que incentiva a dicotomia inexistente entre economia e vida. Uma política de desesperança que atribui como “peso insuportável ao estado” o aumento da expectativa de vida desconsiderando que esta elevação representa um indicador de qualidade. No Brasil, virou um indicador de desqualificação, pois antes da vida vem a economia.
Segundo o Ministro da Economia, esta faixa da população representa improdutividade, fim da linha e prejuízo. Cada dia o etarismo está mais presente no estado brasileiro – velhos não têm serventia. Salvá-los por quê? Pra quê? O Brasil tem se revelado cada vez mais preconceituoso – ódio aos indígenas, às mulheres, aos negros, a qualquer minoria que não se enquadre no perfil autoritário, sectário e extremista. Em termos ambientais, a política é de terra arrasada, não sobrar pedra sobre pedra. Manutenção das florestas, áreas de preservação, proteção à biodiversidade e às culturas tradicionais para os atuais governantes do país, significa atraso, improdutividade – mais peso para a nação.
Produtividade está associada, estritamente, ao lucro financeiro – Angra dos Reis transformada na Cancún brasileira com milhares de turistas velejando, mergulhando, pescando, comprando, consumindo, destruindo e poluindo. A floresta derrubada, equivocadamente, representa expansão imobiliária, aumento da produção agrícola e do setor madeireiro, exploração de ouro e outros metais. Riqueza! Uma visão contrária ao que, verdadeiramente, representa preservar e conservar nosso maior capital. Ao mesmo tempo da promessa internacional para frear a velocidade das mudanças climáticas, os órgãos ambientais são sucateados e desmontados. A fiscalização é coibida e deixa de ser aplicada. Servidores são desautorizados e perseguidos por desempenhar suas atribuições.
Os rios, as populações ribeirinhas, os povos tradicionais, a fauna e a flora são vítimas da poluição causada pelos garimpos ilegais tratados como empreendimentos produtivos e lucrativos. Um prejuízo que não se restringe ao bioma destruído, mas à humanidade. A crise climática é a maior ameaça ao futuro do planeta. Novas pandemias estão associadas à destruição dos habitats naturais. A degradação é responsável pelo desequilíbrio ambiental, essencial para a manutenção da vida e da própria economia. A ameaça é permanente, incansável e destrutiva. Os tempos são inversos. Vivemos a proclamação do ódio, da desumanidade, da deseducação, da destruição, da degradação, do mal, da dor, da morte, do obscurantismo, da anticiência, do lucro a qualquer custo, da desinformação, da política da fome, da desigualdade, da injustiça.
A crise abala todos os valores que qualificam uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais solidária. Tenho medo do tamanho da conta destes tempos inversos, dos riscos da irreversibilidade e da falta de resiliência semeada por falsos valores e por mitos que não passaram de vendedores de ilusões.
(*) Marta Tocchetto é Doutora em Engenharia e professora aposentada do departamento de Química da UFSM
(**) O artigo foi originalmente publicado na página da Seção Sindical da UFSM (Sedufsm) na internet. Para ler no original, clique AQUI.
Na psicologia resiliência é a capacidade do indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas – choque, estresse, algum tipo de evento traumático, entre outros. Não tem muito a ver com ‘coitadinho de mim’.