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Meio milhão – por Orlando Fonseca

O cronista e “brasileiros como nós, que morreram em pouco mais de um ano”

Se estivéssemos falando de dinheiro, seria uma baita grana. Se fosse combustível, seria um abastecimento e tanto, ou um vazamento com potencial de desastre. Mas não, estamos falando de pessoas, de gente, de brasileiros como nós. Gente que morreu no período de pouco mais do que um ano.

Estavam entre nós, dia desses, iam para o trabalho, gostavam de sorrir, apreciavam um churrasco no fim de semana, ou um encontro com os amigos no bar, ao final da tarde, uma troca de mensagens nas redes sociais. Gente que se identifica como pai, como mãe, filhos, tios, avós, vizinhos, colegas.

E tudo isso se perde com uma multidão dessas, sepultadas, cinzas, sob a terra, quando poderiam estar com vida, sob o sol tropical desse nosso imenso país. Tão grande que 500 mil podem parecer pouco, ou quase nada.

Só quando pensamos nas ausências, definitivas, ao nosso redor, é que uma fração desse número tenebroso faz sentido. E o pior, tende a aumentar exponencialmente nos próximos meses. E pior ainda é pensar que esse número realmente poderia ser menor, com medidas simples, e com vacina para todos, e a tempo.

Enquanto muitos parecem não enxergar o óbvio, outros tantos vão continuar desaparecendo dentre nós. Mesmo que autoridades digam que vão morrer, e não se pode fazer nada contra isso, mesmo que seus apoiadores digam que a imprensa alarmista trabalha contra o governo – como se a imprensa internacional fosse se dar a este trabalho – divulgando esses números com alarde, gente vai continuar morrendo.

Porque na verdade não se trata de pessoas que quiseram o destino trágico. Embora alguns, sem saber, ajudaram a compor a tragédia em que a conjuntura brasileira se transformou. Que há uma pandemia é fato, no entanto, estamos assistindo ao que acontece em outros países que se anteciparam à crise, e tomaram as devidas providências, como a medida que cabe a um bom governante.

Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, as ruas voltam a se encher de pessoas, o comércio volta a funcionar, as praças e estádios estão abertos ao público. A vida das comunidades volta ao normal, porque a população fez o distanciamento necessário, única possibilidade de que o vírus não se espalhe.

Em nenhum outro lugar do planeta se difundiu a ideia maluca – e irresponsável – de tratamento precoce com cloroquina ou outra panaceia milagrosa. Lugares em que o lockdown funcionou por semanas ou meses. Em que as vacinas foram adquiridas a tempo, e a vacinação em massa começou no ano passado.

Lugares nos quais, por precaução, brasileiros não são bem-vindos hoje, pois a falta de vacinação no tempo devido – e havia condições para isso, faltou um governo que acreditasse nisso – permitiu que novas variantes do vírus, mais letais, fossem surgindo. Isso fez com que hoje não haja mais grupos de risco no Brasil: ser brasileiro é que forma um grupo de risco para as outras nações.

Os que se foram não voltam, é certo, mas esse número trágico tem de servir como estímulo para que haja uma imunização nacional: resistência à ignorância estrutural, resistência ao fascismo, resistência a todo tipo de atentado à democracia, para que haja mais recursos à ciência e à tecnologia, à educação do povo.

Só assim vamos poder vislumbrar um país que não aceita a perda de meio milhão dos seus, impassível, conformado, indolente. O maior valor que um país pode ter, e defender, é o da vida de seus cidadãos. E o poder para que isso se torne realidade está na consciência de cada um, desde que exerça com inteligência e espírito de solidariedade o seu direito de intervir.

Não se trata de estar de um ou de outro lado, mas de entender de uma vez por todas, que a vida do país depende da chama de cada cidadão, que todas importam, e que meio milhão faz falta. Muita falta.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Nota do Editor: a foto (creditada à ONG Rio da Paz) é de manifestação em Copacabana, Rio de Janeiro, em meória dos brasileiros mortos pela Covid-19. Para conferi-la no original, clique AQUI.

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2 Comentários

  1. Boa parte da imprensa faz campanha contra o governo. Só um(a) completo(a) imbecil não ve isto, negando o óbvio.
    Sim, trata de estar de um lado, indiretamente é ‘não vote no Cavalão, vote no alcoolatra semi-funcional amigo do alheio’. Simples assim. Orquestrado, já apareceu em debates por aí. Por que a tatica? Porque tem muita gente de saco cheio. Aldeia é pequena, todos sabem quem são os famosos. Ou, por exemplo, que existe uma célula do PSOL numa importante universidade da cidade. Não adianta disfarçar, não cola.
    ‘Atentado a democracia’ só com declarações também mimimi.
    Ignorancia estrutural vai continuar, no maximo, independente do governo, irão pagar agencias de publicidade para campanhas dizendo que acabou. ‘Nunca antes na história’. Educação para o ‘pôvú’, o que se tinha antes já não funcionava, não vai melhorar. Esquerda tomou conta e o toque de Midas reverso desta gente (tudo que tocam vira m.) é infalivel. Dinheiro a mais para ciencia e tecnologia com retorno pifio onde parte da população passa necessidades é obsceno.
    Adorno puxando um Freud, se não me engano, dizia que todo conservador era inconscientemente fascista. Cada um batalhe com os moinhos de vento que bem lhe aprouver.

  2. ‘Enquanto muitos parecem não enxergar o óbvio […]’. O óbvio é o seguinte: as perdas são particulares. Só acredita em ‘perda coletiva’ quem tem a visão de mundo com enfase no coletivo. E, pela quantidade de gente com a cara enfiada num celular por aí, é minoria. Simples assim. Alás, 500 mil é só um numero. Cerebro humano não consegue registrar. Quantas pessoas participaram da Romaria da Medianeira em 2018? 150 mil, 300 mil?
    Série de Fake News. Nos EUA mascara e distanciamento em muitos lugares é e foi coisa da Globo. ‘Em nenhum outro lugar do planeta […]’. Quartz India, 4 de fevereiro de 2021, ‘Apesar do ceticismo mundial, India distribui 100 milhões de tabletes de hidroxicloroquina para Covid’.
    Imprensa é alarmista. No inicio da pandemia tocou horror na população. Na hora errada. O bicho papão não apareceu. Depois, quando era necessário, já não funcionou.

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