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ARTIGO. Leonardo da Rocha Botega e as “digitais” que assassinaram a George e Miguel, tanto lá quanto cá

Da Terra da Liberdade à democracia racial: é hora de acabar com os Mitos

Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)

George é um nome bastante comum nos países de língua inglesa. Nos Estados Unidos, o nome remete a George Washington, primeiro presidente e comandante das tropas na Guerra da Independência, proclamado como um dos “fundadores da Nação”. George Floyd foi um negro estadunidense assassinado em via pública por um policial ajoelhado em seu pescoço, tinha 46 anos.

Miguel é um nome bastante comum nos países latinos. Remete a um arcanjo comum ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo. Na bíblia hebraica, Miguel é descrito como “o grande príncipe que defende as crianças de seu povo”. Miguel Otávio foi um menino negro que caiu do 9º andar de um prédio de luxo no centro de Recife, após ser deixado aos cuidados da patroa de sua mãe, enquanto essa passeava com o cachorro de estimação dos seus patrões. A patroa, diante do choro do menino pedindo pela mãe, o deixou sozinho no elevador, apertou o botão de um andar superior e voltou para que a manicure terminasse de fazer as suas unhas.

Provavelmente, George Floyd, assim como muitos outros afro-americanos, passou a vida toda ouvindo da imprensa, de professores, dos políticos e da maioria WASP (branca, anglo-saxônica e protestante) que o seu país era a “Terra da Liberdade”. Uma proclamação que faz parte do Hino dos Estados Unidos, escrito por Francis Scott Kley em 1814, e que é parte do mito estadunidense. Um mito que serviu de justificativa para o expansionismo, para o Imperialismo e para todas as mobilizações de Guerra que o país esteve envolvido ao longo de mais de 200 anos. Serviu também para esconder a escravidão e a segregação racial. Hoje serve para esconder o racismo estrutural de um país onde o “joelho no pescoço” ainda é política de Estado.

Miguel era muito pequeno, talvez não tenha tido tempo de ouvir falar do mito da democracia racial brasileira, uma ideia escrita por Gilberto Freyre em 1933. Na época, o sociólogo procurava transformar a miscigenação, tido como um fator negativo, em um fator positivo na formação brasileira. Sem esconder seu fascínio pela aristocracia portuguesa, Freyre minimizou a violência da escravidão e criou uma sociedade onde os preconceitos foram deixados em segundo plano devido à integração das raças.

O mito da democracia racial brasileira serviu para Getúlio Vargas construir uma imagem única do povo brasileiro, para JK vender o Brasil como um país de paz e harmonia e para a Ditadura Civil-Militar impor o silêncio sobre o Movimento Negro. Hoje serve para colocar um véu de hipocrisia sobre a fiança paga pela patroa; um véu de hipocrisia sobre os cadáveres do Amarildo, do Evaldo, da Aghata, das Claudia, do João, do Gustavo e de tantos outros negros mortos pelo Estado brasileiro; um véu de hipocrisia sobre as pessoas, que imersas em suas branquitudes, afirmam: “não precisamos de uma consciência negra, mas de uma consciência humana”.

Miguel não foi morto diretamente pelo Estado brasileiro. Mas a “democracia racial”, o discurso oficial do Estado brasileiro que pensa a “carne negra” como a “mais barata do mercado”, tem suas digitais nos botões do elevador. George Floyd sim, foi morto diretamente pelo Estado, com requintes de terror e deboches fardados em nome da liberdade. Miguel caiu quando avistou lá do alto Dona Mirtes. George pedia pela sua falecida mãe nos intervalos em que dizia ao policial “Eu não consigo respirar”. Em comum aos dois, os pedidos pelo único porto seguro que muitos negros possuem diante dos mitos: as mães negras. Ninguém mais do que elas, sabe o peso de sociedades que menosprezam a frase: Vidas negras importam!

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do editor: a foto que ilustra este artigo é de Richard Grant, veterano de guerra e fotógrafo norte-americano

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3 Comentários

  1. Fico a pensar cá com meus botões, por que não há notícias de operações militares com balas perdidas nos bairros nobres das nossas capitais. Por que só no Complexo do Alemão, na Maré, no Acai, na Cidade de Deus, no RJ ou no Capão Redondo e Paraisópolis, em São Paulo?

  2. Amarildo morto pelo pessoal das famigeradas UPP’s; Evaldo morto numa operação militar desastrosa onde os disparos foram feitos no veiculo a distancia (logo jogar na conta do racismo é no mínimo discutível); Aghata foi morta pelo tiro de um policial de UPP, efetuou o disparo contra uma moto, o projetil ricocheteou no chão e acabou atingindo a menina; Claudia foi morta durante uma troca de tiros em favela (o que chamam de bala perdida) durante operação policial; João Pedro foi morto durante operação da policia civil e policia federal que cumpriam mandado de prisão contra dois traficantes assassinos, projetil entrou na altura da barriga e ficou alojado na clavícula, ou seja, não foi tiro direto conforme pericia; resumo da ópera: padrão Global, todos casos do RJ. Caso Gustavo não localizei e o caso Miguel não tem nada a ver com a policia, logo não é ‘politica de Estado’.
    Conclusão: racismo existe, tem que ser combatido, existem problemas associados, solução não é simples e, como em toda causa justa, tem muita gente ‘pegando carona’.

  3. Obviamente é mais um amontoado.
    George Floyd não foi morto por ‘política de Estado’. O assassinato foi perpetrado por um agente do Departamento de Policia da cidade de Minneapolis. Maioria deve lembrar da discussão a respeito do ‘papel das Guardas Municipais na segurança pública’. Ou seja, sub-repticiamente durante governos de esquerda tentaram copiar o modelo americano. Alás, o modelo vermelhinho também defende uma academia igual para todo mundo e as promoções (inclusive ao ‘oficialato’) seria feita por ‘merecimento’ (ou seja, adesão à causa). Aparelhamento puro e simples.
    Detalhe bastante omitido: tanto o falecido como o policial trabalharam como seguranças no ‘Nuevo Rodeo Club’, uma ‘boate’ local (de propriedade de latinos) e embora seja certo de que se conhecessem não se sabe a que ponto. Salta aos olhos: ex-policial também tinha que complementar a renda.

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