Acordes da tarde – por Maria das Dores Oliveira
… vem, vem sentir o calor, dos lábios meus, a procura dos teus. Vem matar essa paixão que me devora o coração…”
A voz vinda do apartamento ao lado enche a sala. A voz e o violão penetram nas paredes e enchem mais o ambiente, do que os móveis ainda fora dos lugares. Mudou-se naquele dia para o prédio e logo que começou o vai-e-vem da sala para o quarto, retirando roupas e vasilhas das caixas, Mayra percebeu a voz que cantava e o violão que tocava. Na cozinha, ajeita as panelas nos armários e a voz acompanha, um pouco mais longe. Os movimentos das mãos, que delicadamente tocam as cordas do violão, vão juntos e dão ritmo aos passos, que seguem nos afazeres domésticos. Finda à tarde, a voz se cala. Ela exausta, termina de guardar a mudança.
“… e cada verso meu, será pra te dizer, eu sei que vou te amar, por toda a minha vida…”
Tarde de domingo. Os sóis penetram na sala. O sol que aquece o corpo entra pelas janelas amplas. O outro vem nas canções e aquece a alma. Ambos iluminam a vida. Mayra escuta embevecida a voz masculina. A voz firme, afinada, aveludada, penetra suavemente em seus ouvidos solitários.
“Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem…”
Seu toca cd agora é obsoleto. O moço do 302 canta para ela. Prega o botão na blusa. O som do violão dá o compasso às mãos, que seguram a agulha perfurando o tecido fino.
“Meu bem você me dá, água na boca, vestindo fantasias, tirando a roupa. Molhada de suor, de tanto a gente se beijar. De tanto imaginar loucuras…”
Como será o dono da voz oculta pelas paredes? Devem ser lascivas e sôfregas as mãos, que passeiam pelas cordas do violão.
“… tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais…”
Deitada, costura ao chão, corpo vibrando com os acordes sonoros. O dono da voz abre a porta e vem… Moreno, cabelos nos ombros, mãos grandes e fortes. Toca seu corpo, que desperta na tarde que acaba. Toma–a em seus braços peludos. Acaricia as cordas do violão. Silhuetas e curvas ardentes… Mulher e violão são seres anatomicamente semelhantes e sentimentalmente também.
Ambos afeitos às delicadezas, às cadências… Ambos excitantes se tangidos com maestria. “… se nós, nas travessuras das noites eternas, já confundimos tanto as nossas pernas…” A voz bem perto. Canta agora só para ela. Sussurra em seu ouvido, em seu ventre, que se contrai freneticamente. Cordas vibrantes. Acordes arrebatadores. Continua cantando, tocando… As mesmas mãos circundam sua cintura, seus seios e o violão… Incompreensível para a mente embriagada pelo torpor. Ele atinge lá, o ápice. Um gemido mais forte do violão, um acorde profundo da mulher. “… quem te ama, dorme à sombra de um vulcão…”
“…” A voz se alonja… Sumindo… Sumindo…
Faz frio na sala escura e silenciosa. Acorda. O corpo seminu gelado e teso pela posição desconfortável. O prédio todo dorme. O vizinho já não canta mais. Levanta–se sonolenta e vai dormir no quarto. Falta muito para amanhecer. Ainda há muito que sonhar.
“… e o barquinho vai, a tardinha cai…”
No decurso dos dias, vão–se as tardes musicais. Que nome terá o rapaz da bela voz? O que faz da vida, além de cantar? Como se cantar e tocar um instrumento, não fossem as maiores bênçãos que um ser humano pudesse almejar nesta vida! Mayra alimenta a curiosidade sobre o vizinho e dá asas à imaginação. Não vê a hora de chegar do trabalho, aconchegar–se na poltrona e ouvir, ouvir… Arruma a casa, faz café, lava a louça ao som do seu seresteiro. Moradora recente no prédio, não tem intimidade com ninguém para sondar sobre ele. Espreita do corredor na expectativa da porta do apartamento 302 se abrir. Sempre fechada.
Espreita. A porta se abre. Dois rapazes saem conversando e rindo alegres. Muito rápidos. Seus olhos não alcançam o alvo tão desejado. Recusa convites para sair com os amigos. Se for, perderá as canções da tarde. E ele canta todas as tardes, infalivelmente! Faz previsões das músicas do dia, não admite perder. Dos homens que conhece, nenhum se salva. Todos insossos, inaudíveis, com “voz de sovaco de cobra”, como diz o Lima Duarte. Namoros breves, destoantes, que não cabem em uma canção.
“… queixo–me às rosas, mas que bobagem, as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti…”
Faz vigília do lado de fora do prédio. Olha atentamente para a janela aberta, de cortinas floridas. Uma escada seria bem útil. Os olhos quase saltam tamanha a curiosidade. Vê as moças falantes e sorridentes entrarem e seguirem para o terceiro andar. Vai ao encalço, quase correndo. Abrem a porta do 302 e entram, sem sequer imaginarem a agonia que provocam. Uma fração de segundos. Mayra espicha o pescoço e nada. Só vê corredor e um berimbau dependurado na parede. Qual delas será a namorada do seu cantor? O ciúme suplanta a curiosidade. Morde os lábios, sente a boca amargar. Será a loirinha baixinha? Deve ser a morena alta, ou a outra, de cabelos castanhos e short curto. Desassossego. Pensa em bater lá, à noitinha, quando estiver sozinho. Pedir algo emprestado. Uma xícara de açúcar, quem sabe… Muda a pauta O arranjo é muito antigo. Pedir canequinha de mantimento emprestado a vizinho está em desuso. Teme o vexame.
Sobe as escadas ofegante. Atrasou–se no trabalho, a colega a prendeu no ponto com suas lástimas costumeiras, o ônibus lotado… Mayra chega ainda em tempo de ouvir os primeiros acordes do violão.
“… você é linda, mais que demais, você é linda sim. Onda do mar, do amor que bateu em mim…”
Entra em casa mecanicamente, guiada quase pela audição. Joga–se no sofá, sem pensar em banho e lanche, envolvida naquele momento ímpar de excitação. “… vem que eu te quero todo meu…” Cerra os olhos e desfruta de cada verso. Enlevada, acha–se musa, venerada pelo seu seresteiro vespertino. E ele vem esbelto e moreno. Com seus toques mágicos e suas carícias compassadas, vai explorando sem pudores, como na visita anterior. Mayra esvai–se em frenesis múltiplos. A voz longe… Longe… “…” Ainda entorpecida, o vê saindo com o semblante saciado de quem sabe o bem que causou. Levanta–se abruptamente. Decomposta e despenteada vai atrás. Precisa falar–lhe, não vai deixá–lo fugir desta vez. Passa veloz pelo corredor. Empurra a porta do 302 e entra impulsivamente, atraída pelo ímã melódico. Segue a voz que canta e o violão que toca, cada vez mais perto…
Pára, no centro da sala. Aos poucos, toma ciência do ambiente que invadiu. Estantes empanturradas de discos de vinil empoeirados, capas envelhecidas, muitos, milhares, incalculáveis. Um toca–disco Gradiente, tipo três–em–um e duas caixas acústicas enormes. Espalhadas sobre a mesa, revistas com letras de músicas e cifras para violão. Dessas, que vendem em bancas de jornal. Dois violões e um cavaquinho encostados no canto, completam o recinto harmoniosamente desorganizado. Sentado no sofá de listras vermelhas, um homem empunha o violão. Gordo, calvo, de fartas e rosadas bochechas. No chão, uma menina ainda de colo, chupeta na boca, ergue os bracinhos, regida pela música. Ele tem um leve sobressalto com a aparição repentina. Interrompe o canto, mãos estacionadas sobre o instrumento. Olham–se, buscando as palavras, procurando o tom adequado. Impacto desconcertante. Tem um buraco no chão, que só Mayra enxerga e parece pronto para sugá–la a qualquer momento.
Vem chegando uma senhora, sacolas de supermercado nas mãos, semblante suado e cansado:
–Ainda tocando esse violão, homem! Por que não foi passear com a sua neta? Só enfiado dentro de casa! Não vai querer dar aulas de violão para a menina, como faz com seus netos maiores – e voltando-se para a criança, mais paciente. –Vovó trouxe o seu iogurte, queridinha.
Vai guardar as compras na cozinha Com as idéias dissonantes, a vizinha intrusa procura arranjar as palavras:
–A porta… Estava aberta. Eu ouvi a música… Eu… Moro no 301. Eu… Gosto muito de música…
O conto
Acordes da tarde, de Maria das Dores Oliveira, de Ipatinga/MG, conquistou a 3ª Menção Honrosa na 32ª Edição do Concurso Literário Felipe D’Oliveira, em 2009. Sua publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página Kari Shea / Pixabay.
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