Bonecas – por Eva Maria Mota dos Santos
No pátio da casa, as duas irmãs brincavam com suas bonecas. A primeira de ser mãe, dando de comer à filha. Panelinhas de plástico, gravetos simulando talheres, talinhos de grama boiando n’água, era o almoço que preparava. A outra menina era a comadre, vestindo sua boneca para um passeio. Para isto a enfeitava com gosto, penteando-lhe os cabelos duros, pintando-lhe os olhos desbotados. Uns restos de batom da mãe e um pouco d’água num frasco de vidro – fazendo às vezes de perfume – era o toque final que a Chica precisava para ir de visita à casa da madrinha.
Brincavam assim, entretidas, na hora sossegada do depois do meio-dia. O pai dormia de bêbado, babando-se. A mãe andava ao léu, diz que procurando trabalho, não sabiam. Sabiam apenas das coisas do seu mundo, da paz daquela hora sem bordoadas. Tomando conta delas, por trás da cerca, uma vizinha gorda, rebocada de batom. Bem quietinhas, viu? Balançavam as cabecinhas loiras, trigais ao sol causticante, elas também bonecas, lindas no viver da infância. Faziam casamentos de reis, batizavam as filhas, organizavam festas com príncipes que chegavam em cavalos brancos, que era apenas um cabo de vassoura, onde vinha montado o Maneco, um bruxo de pano esquisito. Comportadas, hein? Recomendava a vizinha, de olho aberto.
Assim estavam naquele mundo de fadas, quando o homem apareceu. Vinha de camisa aberta, arrastando chinelas, cuspindo catarro grosso no canteiro da horta. Atrás dele, a gorda numa prosa de conhecidos. O moço veio ver as meninas, sejam boazinhas.
Ao ver o sujeito, a irmã mais velha enrugou a testa e a mais moça se fechou por dentro, aferrolhando fantasias. Vinha, outra vez, aquele estranho meter-se entre elas, quebrar encantos. O moço tinha vindo brincar, não queriam? Perguntou a mulher, como se o querer delas importasse. Desamparadas, as duas meninas avistaram a rua, totalmente vazia, o portãozinho trancado, impedindo uma fuga repentina.
Era sempre assim, quando a mãe saía e o pai caía de porre, a vizinha era quem mandava, vestindo autoridade, exigindo obediência. Nestas horas, o tal moço aparecia numa conversa mole, trazendo embrulhinhos de balas, chiclês, que ficavam jogados por ali. Só um pouquinho. Pedia. E a vizinha dizia que fossem logo, no galpão, que era um lugar bom para brincadeiras. Olha lá, bem direitinho. Ameaçava com a mão na orelha.
Naquela tarde, as duas irmãs entreolharam-se caladas, sofrendo o deserto da rua, o pai inútil no seu sono de pedra. Pequeninas demais na vastidão do mundo, obedeceram. A mais velha ergueu-se, pernas bambas, rostinho sujo. No olho, que antes brilhava com o sonho das bonecas, uma lagriminha à toa, medrosa. Depressa que o moço tá esperando. Advertia a mulher, olhando sempre a rua, disfarçando.
A outra menina ficou embalando o Maneco, só por embalar, que vontade de brincar não tinha mais, o sonho interrompido na hora boa da tarde. Lá dentro, a irmã com o estranho. Ouviria gritos? O pai acordaria? Viria, de repente, com o relho expulsar o sujeito, lanhar o rosto da vizinha com suas mãos de pai – boas mãos de quem protege? Em vez disso, só uns barulhinhos no galpão e dois gemidos abafados.
Quinze minutos depois, a irmã maior apareceu desfeita, cabelos em desalinho, vestido rasgado, a perna machucada, mancando. Limpou o nariz vermelho com a manga da blusa e sentou-se ao lado da menorzinha, segurando-lhe a mão, gesto solidário, mas inútil — pois a bruxa de boca lambuzada já ordenava que fosse a pequena, agora, o moço não podia demorar. Ela não quer brincar. Arriscou-se a dizer a irmã mais velha — coração de mãe num peito pequenino de criança– e tomou um safanão. Se contasse para alguém, apanharia mais–advertiu a bruxa, puxando a pequena pelo braço.
Outros dolorosos minutos em que o mundo parecia estático, deserto de almas caridosas. Só a vizinha gorda montando guarda e a menina esperando compaixão. Quando a irmã menor apareceu, correu a abraçá-la num consolo desajeitado. O sujeito veio atrás, abotoando as calças. Passou pela mulher e deu-lhe algo que ela escondeu entre os seios, satisfeita. Saíram os dois, advertindo as meninas que, se piassem, já sabiam…
De repente, com o portão novamente aberto e a rua despertando da sesta, o mundo recomeçou a girar e as duas crianças voltaram ao faz-de-conta. A mais velha ajeitou a roupa do Maneco, a mais moça alisou o vestido da Chica. Uma igrejinha tosca foi montada com pedaços de tabuinhas velhas escoradas umas nas outras. Vieram reis e rainhas para o casamento dos bonecos. Veio um gato vagabundo que andava por ali para fazer o papel de padre na cerimônia. O bolo era de barro mesmo, mas tinha gosto de chocolate. Com o portão batendo livremente e o sossego das duas, o sonho recomeçou outra vez, meio fungado e dolorido para uma, com gosto de sal e arranhões no rosto para a outra, mas ainda assim com sabor de sonho.
O conto
Bonecas, de Eva Maria Mota dos Santos, de São Gabriel, conquistou o 3º lugar na categoria Contos no 30º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2007. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Couleur / Pixabay.
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