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Combater o “dragão” da fome e do ódio – por Valdeci Oliveira

“Mais perverso que a falta de comida é lucrar de alguma forma com ela”

Na última quarta-feira, no Santuário de Aparecida (SP), no feriado em que se comemorou o Dia de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, entre mensagens de fé e espiritualidade, o arcebispo da Arquidiocese, Dom Orlando Brandes, disse ser preciso combater o “dragão” do ódio, da mentira, do desemprego, da incredulidade e da fome. À carência de pão, Dom Orlando juntou a falta de fraternidade no coração das pessoas.

Enquanto, do lado de dentro, transcorria a missa solene, a principal das celebrações de 12 de outubro no Santuário, do lado fora da Basílica, irrompeu um tumulto, uma perseguição a um homem que vestia camiseta vermelha e também casos de coação e agressão a profissionais da imprensa, além de vaias.

Estas ocorreram quando a fome, com destaque a que atinge as crianças – afinal, aquele também era o Dia delas – foi lembrada e criticada na manifestação religiosa. Ao ecoar pelo sistema de som externo, a citação imediatamente se transmutou em uma carapuça que serviu às cabeças vestidas de verde e amarelo.

O que aconteceu no Santuário de Aparecida diz muito sobre o momento atual, pois, em meio a uma disputa eleitoral, que ditará os rumos do país nos próximos anos, a fome continua mostrando uma das faces mais grotescas de uma sociedade em que seres humanos se apresentam despidos de qualquer compaixão e relegam para um distante segundo plano um momento de celebração da fé, da busca de uma benção. Em seu lugar, o destempero é um mantra que busca negar o real – invocado na forma de vaia, de desrespeito.

Ao mesmo tempo em que sua gravidade é negada por autoridades públicas de alto escalão, o que faz com que a turba, como numa correia de transmissão, esteja onde estiver, repita a narrativa, a fome também tem serventia. Como disse Darcy Ribeiro sobre a educação, para quem sua crise não era uma crise, mas um projeto, a fome também cumpre este papel.

Mais perverso do que a falta de comida no prato é lucrar de alguma forma com ela, buscar revertê-la em votos distribuindo auxílios em período eleitoral, medidas estas por muito tempo tão descaradamente negligenciadas quanto desprezadas e que só existem hoje, em quantidade de beneficiários e valores pagos, por conta da luta e pressão da sociedade civil e do Congresso.

A fome é tamanha que, como feito agora pelo governo federal, o simples fato de adiantar em alguns dias o pagamento aos que precisam traz em seu DNA a “esperança” – por parte de quem promove a medida – de fazer chegar nas urnas muitos estômagos parcialmente alimentados e agradecidos.

No mesmo grupo em que o escárnio convive irmanamente com a insensatez, também há espaço para se ganhar muito com a indigência alheia a partir da cobrança de juros e taxas financeiras, “adiantando” parte do valor. Sem risco algum à operação, doze instituições farão o “serviço”.

Os grandes bancos, talvez diante do absurdo ético – mesmo para um liberal defensor do grande capital – que é extrair o lucro junto à desgraça de 21 milhões de famílias pobres, preferiram ficar de fora. O risco que tamanha estupidez e falta de humanismo podem trazer às suas imagens não compensa o retorno. Avaliam que, com tal bestialidade eleitoreira, seriam vistos como vampiros a sugar o pouco de vida que é dado para que povo pobre sobreviva. 

À fome e ao receio de ter de conviver com ela, se soma o temor de ser demitido, o que torna vantajoso para muitos empregadores utilizarem o medo para direcionar, de acordo com seu próprio interesse, o voto de quem o sustento depende estar ou não colocado no mercado de trabalho. Já são perto de 200 as denúncias neste sentido junto ao Ministério Público do Trabalho, a maior parte registrada na região Sul do país, estando o RS no topo deste ilegal e covarde pódio.

E nesse rol de responsáveis está, no fim das contas, a maioria de nós, por omissão ou cumplicidade. Até mesmo as vítimas desse flagelo talvez tenham, mesmo que involuntariamente, sua parcela neste latifúndio de injustiça, pois são levadas, por motivos dos mais variados – mas nenhum por acaso – a ajudar a eleger aqueles e aquelas que, na seara política, escolherão o rumo que será dado às suas vidas. E não raro esse caminho se mostra contrário aos seus próprios interesses.

Por óbvio, ignoram o funcionamento de todo o complexo mecanismo psicossocial-ideológico a que são submetidos – e seria demais que, de barriga vazia, deles fosse exigido total compreensão, ainda mais que isso está longe de se tratar de uma exclusividade.

A sociedade democrática, representada por suas instituições, partidos, organizações sociais, políticas, religiosas, empresariais e populares, precisa estar atenta. Negar a existência da fome, assim como usá-la para obter dividendos políticos e econômicos, é repulsivo e criminoso, como também é apenas parte deste triste e repugnante quadro que está sendo pintado com as tintas da dor alheia nesta reta final das eleições brasileiras.

(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. É também o atual presidente da Assembleia Legislativa gaúcha.

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Um Comentário

  1. Numero de pessoas na situação de insegurança alimentar foi inflado para justificar aumento de impostos depois. Afinal, quem é contra o ‘combate a fome’? Depois arrecadam 100, tiram 5, e dos outros 95 uns 30 ficam em BSB mesmo, uns 45 vão para obras faraonicas desenvolvimentistas, uns 20 ficam para os estados e uns 5 vão para ‘matar a fome’.

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