Contos

Prioridades – por Vicentônio Regis do Nascimento Silva

No dia que completou setenta e quatro anos, uma voz sussurrou-lhe:

– Daqui a dez anos…

Despertou da madorna, sentou-se na cama, vestiu a camisa, olhou o relógio que parara exatamente às 17h23min, pegou o relógio de pulso, que também parara às 17h23min, encaminhou-se para a sala, cujo relógio da parede interrompera-se às 17h23min.

Deduziu em dez anos, às 17h23min…

Sentado no sofá, desprezou a revista semanal, cruzou as pernas, perdeu-se em devaneios. Lembrou-se do período difícil após a perda do emprego aos trinta anos, do envolvimento dos filhos com substâncias estranhas, da sogra que morara com ele – oito anos de sofrimento e de desespero.

Por outro lado, lembrava-se dos importantes prêmios que recebera, dos jantares e das festas de que participara, da vida intelectual agitada, do carisma, do reconhecimento dos alunos, da gratidão dos que ajudara, das viagens que fizera.

Sim. As viagens marcaram sua vida. Os amigos, os tios, os parentes e os conhecidos (não poderia falar de irmãos, pois era filho único) compraram carros e casas, adquiriram salas comerciais e fazendas, enriqueceram com aplicações em bolsas de valores e em especulações financeiras de todas as espécies. Ele viajara.

Primeiro conhecera Paris. Transitara por seus cafés, suas bibliotecas, seus museus, seus cabarés. Conhecera as casas de Victor Hugo, de Alexandre Dumas (o pai e o filho), de Julio Verne, de Camus, de Sartre. Quisera visitar as casas e os universos de outros escritores, de filósofos, de pensadores fundamentais para entender a construção da identidade ocidental.

Na Inglaterra, procurara incessantemente as residências de Charles Dickens, Robert Louis Stevenson e Arthur Conan Doyle.

Na Alemanha, buscou reconstituir o cotidiano de Nietzsche e, à imitação de Thomas Mann e Hermann Hesse, engoliu parte da neve da soleira da casa do filósofo. Na Itália, chorou ao som de Puccini.

– Uma das melhores literaturas, assegurou à esposa. Que outro país abrigou um gênio como Lampedusa?

Embora conhecesse grande parte do mundo, especialmente a Europa, lamentava-se por nunca participar da cultura do hemisfério sul. Desses lugares, além da Literatura e da Filosofia, adorava as danças.

De um estalo, pulou do sofá:

– Maria! Maria!

A secretária residencial despontou da cozinha, enxugando as mãos num pano de prato bordado, comprado no litoral pessoense. Olhou-o espantada, imaginando que estivesse passando mal.

– Onde mora aquele colega do Carlito?

O colega do Carlito, neto mais novo, morava dois quarteirões abaixo numa casa de dois quartos, cozinha, banheiro, garagem e uma sala de estar pequena onde mal cabiam duas cadeiras e o piano.

As visitas geralmente sentavam-se em tamboretes improvisados ou na garagem ou na calçada. Se havia uma paixão ao amigo de Carlito, chamava-se música clássica.

O amigo do neto espantou-se ao ouvir suas considerações.

Queria aprender piano. Em sete anos. Nem mais nem menos. Tocou na casa de alguns amigos, em concertos amadores, em festivais irregulares.

Quando faltavam pouco menos de dezoito meses, entrou no tango. A idade avançada, os movimentos limitados, a agilidade comprometida, as dores na coluna e nas pernas que atrapalhavam a coreografia mínima não impediram a assiduidade nas aulas.

Três dias antes do aniversário tomou um voo para Buenos Aires. Alugou um piano e pontualmente às 19h da véspera, iniciou um concerto de duas horas e oito minutos. Os aplausos invadiram a Plaza de San Telmo.

Acordou disposto no dia do aniversário. Tomou café por volta das nove e meia, visitou algumas livrarias, leu as notícias de jornais e revistas, escolheu alguns discos, enviados pelo correio à esposa, aos filhos e aos netos, retirou da mala um paletó impecável, usado minutos depois de sair de um banho demorado, regado a sabonete Phebo. Colônia Alma de Flores.

Atravessou a rua utilizando uma bengala, mais para causar avivamento estético do que para se apoiar, entrou no cabaré, jogou algumas cédulas de cem pesos sobre a mesa de uma meretriz, conduziu-a ao centro e, de olhos fechados, pediu “Por una cabeza”.

O fim da dança coincidiu com os aplausos efusivos dos espectadores e com as pancadas de um relógio grande e antigo que badalava estranha e pontualmente às 17h23min.

O conto
Prioridades, de Vicentônio Regis do Nascimento Silva, de Maracaí/SP, conquistou o 2º lugar na categoria Contos no 32º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2009. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Nile / Pixabay.

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