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Pérolas aos porcos – por Márcio Grings

O Maître está dividido entre o cozimento dos ingredientes e a social com os clientes. Na cozinha, trabalha em sua alquimia como uma espécie de xamã frenético, gesticulando deliberadamente e verbalmente passando as coordenadas para que o ajudante execute os pratos exatamente da forma que os pensou. Com um béque fincado no meio dos beiços, dá ordens entreabrindo a boca e serrando os olhos a cada nova tragada. Ao contrário do senso comum a respeito disso, ele sempre achou que o fumo o deixa mais focado, com os sentidos ajustados e pré-dispostos a resolver contratempos e imprevistos que surgem ao longo do processo. Concentração, esse é um dos segredos.

No salão, faz questão de conversar com cada um dos frequentadores, chamando-os por nome e sobrenome. Só voltou a sua cidade natal porque de fato precisou cuidar da mãe doente. Agora que a velha faleceu, precisa solucionar algumas pendengas. Enquanto isso toca o pequeno restaurante da família com algumas inovações. Ainda sente saudades de São Paulo e de como trabalhava e era respeitado quando viveu na grande metrópole. A portinhola faroeste do laboratório culinário range dezenas de vezes no vai e vem daquele homem de branco que parece um membro de uma banda de rock uniformizado de Chefe de cozinha.

Sua roupa precisa urgentemente de uma lavanderia. Manchas e respingos tomam conta do tecido. Cada vez que entreabre uma das panelas, dá um pega valendo no cigarrinho de artista. Enquanto pulveriza os temperos, adiciona água, doura a carne e usa sua colher de pau como uma varinha mágica, cinzas do pito se misturam ao preparo. Ele crê piamente que isso faz parte do misanscene.

Dá uma espiada pela pequena abertura que dá visibilidade ao salão, e pode perceber que a lotação estourou. Os dois garçons ficam ziguezagueando entre as mesas numa coreografia bonita de se ver. Avisa a um de seus funcionários que na mesa do fundo uma mão foi estendida solicitando atendimento. Um olho no peixe outro no gato. Sempre foi assim. Não ia ser diferente agora que a coisa estava sob seu comando. O problema é explicar aquilo que não precisa ser explicado: “Não dê aos cães o que é santo nem jogue pérolas aos porcos”. O bordão bíblico soa no inconsciente como um alerta de a guerra já está perdida.

Como justificar o conceito de “Slow food” numa cidadezinha repleta de gringos que enxergam o jantar principalmente como algo quantitativo. Ele tenta explicar pela milésima vez a um dos habitues da casa:

“Slow food, comida lenta. É uma referência à busca da organização por uma maior lentidão no processo de produção e degustação dos alimentos, visando a um aumento do prazer proporcionado pelos mesmos”, diz olhando bem nos olhos do Seu Graziolli, um dos moradores mais folclóricos daquela pequena cidade. A Quarta Colônia ainda está repleta de imigrantes, e além de ser um antigo amigo da família, Seu Graziolli era um deles.

“E vai ter polenta nessa porcaria de janta? (…) Ainda vai demorar muito? (…) Quando vocês vão servir aquela galinha como molho do jeito que a tua mãe fazia?”, acrescenta com impaciência o velho conhecido. Depois daquele comentário, com o rabo entre as pernas, o Maître caminha mudo até a cozinha. Enquanto isso, seu ajudante começa a meticulosamente a servir os pratos. O Chef resolve imediatamente enrolar outro baseado manuseando a seda com velocidade de um filme mudo de Chaplin. Hoje ele entende por que Hunther Thompson acabou com a vida dando um tira de espingarda nos próprios cornos.

Está decretado: a costela de porco ao molho laranja com mel vai ser um fracasso. Calibra a taça de vinho, respira fundo e resolve preparar uma polenta bem ao estilo italiano para amenizar o fiasco.

 

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Um Comentário

  1. Gostaria de parabenizar o Márcio Grings por mais uma leitura maravilhosa. Além de ser uma leitora assídua do Claudemir, tenho que admitir que fico esperando as publicações do Grings que sempre surpreendem pelo sentimentalismo do personagem, independente de quem seja o eu-lírico.

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