Contos

Olho por Olho, Dente por Dente! – por Jair Lisboa dos Santos

Cá estou eu confortavelmente instalado na cadeira da morte onde se dará início a sessão de tortura. O clima revela-se solene, muito siso e pouco riso, dia e hora marcado, uma hora de atraso. Uma fraca luz ilumina o ambiente.

Vem-me a mente os meus crimes, fui imprudente eu sei, sob minha liderança eram 32 elementos, um grupo pequeno e fechado todos bem formados e polidos. Foram treinados ao meu comando, organizados em linha indiana, perfilados em dois arcos de 180 graus, cada um posicionado em pontos estratégicos para suas funções designadas. Um comandante e sua tropa organizada: bastava um movimento dos meus lábios para que eles se
mostrassem ali em posição e a disposição, armados até os dentes.

E o meu silêncio era suficiente para que eles ficassem de tocaia, escondidos, aguardando meu comando para entrar em ação. E sem piedade nos olhos, com fome animal e obedecendo a uma rigorosa coreografia eles instintivamente dilaceravam, trituravam, esmagavam o que ousasse passar por eles, de forma nua e crua.

Agora estou preso a essa cadeira medieval e uma música orquestrada ecoa no ar. No vestuário de meu algoz um capuz, luvas nas mãos e na boca dele uma mordaça, talvez para que eu não possa ver seu sorriso sádico. Inoxidáveis e esterilizados objetos de tortura (esterilizados Senhor?) de forma desafiadora são meticulosamente expostos a minha frente com a frieza profissional que o compete.

De repente um susto: um holofote com uma luz amarelada de alta potência é a mim direcionado quase cegando meus olhos, embaçando a visão. Ainda sim consigo vê-lo, quando com ares de crueldade, na mão uma seringa cuja agulha reluz na ponta, ele me aplica uma injeção, uma dose letal de um entorpecente tóxico. Anestesiado, quero mas não consigo gritar os direitos humanos, nem sequer um último pedido consigo mais articular.

Todavia ainda sinto que estou vivo, pois nessa atmosfera desconcertante ainda posso ouvir aquela irritante música, que agora descubro fazer parte do suplício (meinn Gott será Wagner?).

O registro nas mãos frias do torturador me delata: em 18 destes duros e fortes componentes, por anos a fio, consta crueldade e maus tratos perpetrados por mim e lastimavelmente saibam vocês 2 mortes em ação: o 11 e o 24. Sinto a falta do 11, mas não sinto remorsos pela perda, pois era um dos que seguiam a frente do grupo, portanto bastante vulnerável. O caso se deu num confronto direto contra o inimigo no qual não tive tempo de reação ao golpe frontal, e num instante, lá estava o 11 caído ao solo, ensanguentado e sem vida. Perdas irreparáveis que me deixaram um vazio, um osso duro de doer. Volto à atroz realidade que me encontro…

Ele está pensativo e eu apreensivo, percebo que ele tem um fio desencapado nas mãos, mas deixa-o de lado, quem sabe vai utilizar depois. Não satisfeito com o resultado da insanidade anteriormente praticada o carrasco se utiliza da técnica da desidratação e impiedosamente introduz uma sonda através da minha garganta, extraindo minha água corporal. Estupefato a essa investida, me sinto asfixiado. Contudo resisto brava e heroicamente, me soando um paradoxo diante das covardias do meu passado.

Ah! o meu passado… Muitas vezes usei-os ora como autodefesa, ora como adestrados cães de ataque. Como consequência à perda do 11 e do 24, numa tentativa de fechar os espaços criados pelas perdas dos elementos, desvios e desordem por parte dos mais chegados começaram a acontecer. Uma sobrecarga abalou o grupo como um todo. Ainda assim, jamais usei o aparelho fornecido pelo Estado.

Percebendo que ainda tenho respiração, o desumano agora me atordoa com jatos de ar de acachapante pressão, que me faz tremer e afundar na cadeira, tudo em vão. Suspense no ar. O sanguinário se desespera, olhos sádicos, fico horrorizado quando vejo que ele parte pra cima de mim com uma… não pode ser… não… nããããão!!!.

A última coisa que queria seria neste momento era revolver o passado, mas essa aflição me permite o exame de consciência, momentos de reflexão que duram frações de segundos. Tenho o maior orgulho de que nenhum dos meus bravos elementos nunca amarelou, ao contrário. Por tudo que já passou por eles, as inúmeras vezes estiveram presentes em boca de fumo. Todo cuidado é pouco, dia e noite, é uma higiene: se o elemento do grupo for descuidado, babau, acaba se desintegrando, amolecendo e no final cai de podre. Tudo isso com muito sofrimento. É meu amigo, muito verniz e pouca raiz. Mas o que eu vejo a minha frente me traz de volta a realidade.

Ele parte pra cima de mim com uma furadeira, – o mal se corta pela raiz. Brocas em altíssima rotação me abrem orifícios com precisão cirúrgica. Nem a minha desesperada tentativa de falar com os olhos o impede da selvageria e agudos e insuportáveis decibéis me ensurdecem, atormentam meu sistema nervoso e desencadeiam um terremoto em meu cérebro. Sinto no ar um cheiro de queimado e um sabor de sangue quente que desce pela minha garganta. Provas cabais de que mesmo vencido pelo atordoamento, ainda continuo pertencendo a essa vida. E me pergunto: quando e como será que vai acabar essa tortura?

Meu Deus, apesar das advertências que eu recebia dos meus superiores, quantas balas de pequeno e grande calibre, balas perdidas atravessaram as fronteiras em ação? Existem registros de outros grupos onde todos, eu disse todos, os integrantes foram alvejados! No entanto após anos em ação sob meu comando apenas o 21, incisivo e descuidado que era, foi obrigado a receber prótese, sendo condecorado com ouro. Nessa agonia entre a loucura e a realidade me pergunto se isso é um delírio! Esta pena está prescrita no Código Penal ou no regimento disciplinar corporal? Vem-me a lembrança Tiradentes, um mártir executado e esquartejado, que inocentou seus companheiros inconfidentes e cujo sangue se lavrou a certidão do cumprimento da sentença.

Desfalecido, sem saber o que me espera, não mexo um fio de cabelo. Numa derradeira tentativa, pé-ante-pé o truculento se afasta da cadeira para se proteger e um pesado silêncio paira no ar. Sinto apenas que uma gota de suor desce friamente pela minha espinha dorsal. Boquiaberto com a barbárie imposta, sou exposto de forma monstruosa a níveis incalculáveis de radioatividade.

Não foi dessa, com as forças praticamente extinguidas, mais uma vez sobrevivi.

Então, lentamente levanto da cadeira, faço um cheque nominal, pago a conta do meu dentista e vou embora.

O conto
Olho por Olho, Dente por Dente!, de Jair Lisboa dos Santos, do Rio de Janeiro/RJ, conquistou o 2º lugar na categoria Contos no 36º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2013. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Rafael Juárez / Pixabay.

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