Quem garante a qualidade da erva-mate do chimarrão da gauchada? – por Carlos Wagner
Quem se responsabiliza pela qualidade de um produto consumido por milhões?
Por sua natureza, o gaúcho e seus descendentes espalhados pelas fronteiras agrícolas do Brasil e de países vizinhos são um povo dividido e radicalizado na política, no esporte e na cultura. Poucos assuntos os unem. Um deles é o chimarrão, também chamado de mate ou amargo. Pelo respeito que se tem pelo mate é difícil acreditar que exista alguém que tenha coragem de adulterar a erva-mate. Mas existe.
Descobri isso no início dos anos 90, lembro-me bem como foi. Na metade da década de 80 eu engatinhava na reportagem investigativa e sempre ficava contente quando um jornalista experiente me atirava uma “batata quente”, porque era uma oportunidade de mostrar o meu trabalho.
Um dia, depois do tumulto do fechamento da redação, estava conversando abobrinhas com um editor quando o Danilo Ucha, um jornalista veterano especializado em arte, cultura, economia e autor de vários livros, me perguntou se eu queria me incomodar.
A resposta foi um sonoro “claro que quero”. Ele explicou: “Tem gente adulterando a erva-mate. Aqui tem uma lista de nomes”. A lista estava escrita a caneta em uma lauda. Ucha nasceu em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, lá se toma mate com erva forte. Faleceu em 2016 e sempre que cruzava com ele em alguma cobertura jornalística a gente falava sobre a pauta da erva-mate.
Antes de continuar contando a história uma explicação para quem não é jornalista veterano ou não é do ramo. Chamávamos de lauda a folha de papel em que redigíamos a matéria na máquina de escrever. O que diferenciava a lauda de uma folha de papel comum era a marcação do número de linhas e de caracteres por linha, o que dava uma medida aproximada do tamanho que o texto ocuparia na página do jornal.
Continuando a história. Viajei durante duas semanas fazendo a pauta do Ucha. Descobri que estavam colocando açúcar durante o processo de moagem da erva-mate. Acontecia o seguinte. As ervateiras compravam as folhas da erva-mate de produtores argentinos, que são mais amargas do que as folhas brasileiras. E adicionavam açúcar para suavizá-las. Sem informar ao consumidor, o que colocava em risco a saúde dos diabéticos. E também afetando a qualidade do chimarrão.
Outra prática ilegal e muito perigosa para a saúde era moer folhas de outras plantas junto com as de erva-mate para aumentar o volume. Sem bem lembro, na época fiz uma reportagem de duas páginas no jornal denunciando uma série de irregularidades. A matéria provocou um alarido entre os leitores porque ninguém imaginava que existissem pessoas com coragem de fraudar o chimarrão, uma instituição dos gaúchos.
Depois da reportagem foram feitas várias leis para controlar a qualidade da erva-mate, uma delas obrigando as ervateiras a informar na embalagem sobre a adição de açúcar ao produto. Anos depois (1996, 2011 e 2019), andei pelas fronteiras agrícolas povoadas pelos gaúchos e seus descendentes e fui lembrado por vários agricultores da reportagem sobre a erva-mate.
Uma explicação para os jovens repórteres. As regiões ainda desabitadas do Centro-Oeste do Brasil eram chamadas de fronteiras agrícolas. Empresas de colonização e o governo federal, através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), povoaram essas regiões com agricultores de todos os estados brasileiros. O maior número foi de gaúchos e seus descendentes, que já haviam povoado o oeste de Santa Catarina e do Paraná. A série de reportagens que fiz foi chamada de Brasil de Bombachas e posteriormente transformada em livros. Fim da explicação. Voltando à nossa conversa.
Não só por ser um consumidor de chimarrão, mas também levado pela curiosidade da minha profissão de repórter, sempre estou atento à qualidade da erva-mate. Por serem vários os fatores que influenciam na qualidade do produto, o sabor de uma mesma marca de erva é diferente de pacote para pacote. Há também uma grande diferença de sabor entre a erva nativa, aquela que nasce naturalmente no meio do mato, e a cultivada, que também é conhecida como “da roça”, por ser plantada.
Agora, essas variações de sabor provocadas pelo clima, origem da folha e até a maneira como é armazenada não têm nada a ver com os danos causados ao produto por sacanagem do ervateiro. É justamente aqui que a imprensa precisa entrar em campo e fiscalizar. E também os ervateiros que trabalham de maneira séria precisam ficar atentos à infiltração de safados no ramo e denunciá-los.
Lembro que durante muito tempo recebia ligações de empresários do ramo me alertando sobre picaretagens. Entendo por que a erva-mate é um assunto de pé de página na imprensa nacional. O principal motivo é que o consumo se restringe aos gaúchos e seus descendentes. Atualmente são produzidas 900 mil toneladas anuais.
Mas não entendo por que a imprensa do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso não se interessa pelo assunto, já que a maioria dos habitantes desses estados é consumidora do chimarrão e do tereré (mate gelado).
A imprensa desses estados deveria prestar mais atenção nos assuntos de interesse dos seus leitores. Lembro os colegas que um dos ensinamentos que se aprende na lida de repórter é que qualquer tipo de alimento ou bebida merece atenção pelo seu elevado potencial de causar danos à saúde em caso de adulteração ou contaminação.
Nos dias atuais a questão dos alimentos e bebidas é tratada pela imprensa com o foco na maneira como são consumidos e os benefícios que trazem para a saúde. Conheço o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. Existe muita sacanagem no setor de alimentos, como carne clandestina.
A falta de jornalistas especializados nesse ramo nas redações é um fato. Tenho defendido nas conversas que tenho com alunos dos cursos de jornalismo que a nossa profissão exige que a gente conheça um pouco de cada assunto. E que seja especializado em dois ou três. A questão da sanidade dos alimentos é um setor carente de jornalistas especializados. Fica a dica para os futuros colegas.
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(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.
SOBRE O AUTOR: Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
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