Segredos Coletivos – por Mariana Salomão Carrara
Você, prosaicamente, procura o outro pé do sapato na pressa do elevador que você já deve ter chamado, termina o copo de leite, enxuga a mão na roupa, e é provável que não pense em nada, só em correr, e chegar singelamente, ao trabalho. E eu fico pensando que nunca houve sintonia, que a gente começou a ouvir uma música juntos, mas nunca encontrou propriamente a estação, e a música ficou lá, num discreto chiado, sem que a gente movesse o botão desse rádio nem pra frente nem pra trás. Ficamos assim em desajuste, na ilusão de que o importante é estar ouvindo, de alguma forma, esse som que a gente não consegue saber de onde vem, nem desligar, nem aumentar, nem arrumar.
A vertigem ataca o início de um sono vespertino. Quase dormir, mas despertar a tempo de concluir que se vai de fato dormir e que a sensação é de queda, como se o sono da tarde fosse um buraco, um salto do colchão para dentro da cama, uma escorregada na espiral infinita do universo das molas. É essa a cumplicidade que eu preciso ter com as pessoas, é preciso que elas também reconheçam nelas essa vertigem logo antes de pular para o sono, a cumplicidade nesses pequenos fenômenos íntimos.
E você parece que escapa de todos numa total dissintonia. Cumplicidade também nos fenômenos de infância, esses que vão nos compondo aos poucos. Você contornou todos eles, você parece que não tem os seus segredos coletivos. Esses segredos que eu chamo de segredos, porque ninguém fica falando deles; e de coletivos, porque muita gente sabe, todos sentem. A vertigem antes do sono da tarde, o perigo de uma mão surgir do fosso do elevador, tateando o buraco da ventilação, ou de aparecer mais uma pessoa na imagem do espelho, ou de um semiconhecido sentar do seu lado no ônibus, sem quase nenhum assunto; de morrer de repente, com a roupa íntima não muito limpa a ponto de as pessoas da autopsia, do hospital, ou seus parentes concluírem que uma pessoa com esse cheiro, nem merecia de fato viver.
Talvez, esse segredo da morte sem banho não seja tão coletivo assim, mas de toda forma você não tem, nem esse, nem qualquer outro segredo fenomenológico, que nos coloque em sintonia ou cumplicidade. Você sai e volta sem que nenhum detalhe da existência tenha trazido você pra mim durante o dia.
No banho, o condicionador escapa em excesso na minha mão. Aperto o tubo instintivamente, criando um prenúncio de vácuo e encosto a boca do frasco na minha mão, recolhendo de volta o que não vou usar. O frasco suga o condicionador da minha mão feito um animal aos soluços, espasmos de afogamento, e fico pensando se você possui esse segredo coletivo, se você sabe recolher de volta o condicionador que saiu a mais, essa sabedoria que ninguém transmite, que vem da física simples, que foi se construindo em nós conforme apertamos frascos, experimentamos diferenças de pressão, e concluo que não. Você vive assim livre de empirismos, foge às sabedorias íntimas que não vêm nas notícias, nem nos livros e fico pensando se o mundo não se divide justamente entre pessoas que sabem colocar o condicionador de volta, assim nessa violência sofrida do frasco sufocando na palma da mão, a tomar fôlego com a boca emborcada no que ele próprio cuspiu, e pessoas que simplesmente jogam o excesso no chão, por não visualizar qualquer outra possibilidade. E nem sequer pensam que há pessoas que pensam nisso.
E então, você provavelmente está desse outro lado do mundo, o mundo das pessoas que não têm segredos coletivos e que jogam o excesso do condicionador no chão, ou mesmo ensebam os cabelos; que não pensam que há pessoas que pensam nisso, não pensam que há pessoas que pensam na vertigem do sono da tarde e na aflição de olhar muito tempo um quadro de Jesus, temendo que ele possa piscar e na angústia de não saber se aquela senhora que entrou no metrô já percebeu que é idosa há tempo suficiente pra não se ofender se você ceder o assento. Depois, na angústia de imaginar o dia em que alguém lhe ceder o assento pela primeira vez, e ficar pensando se você já terá se acostumado com sua própria idade, antes que alguém lhe surpreenda com isso, e no meio desse pensamento não ceder o assento, apenas levantar e sair, na esperança de que ninguém o ocupe, apenas aquela senhora que, talvez, ainda não seja tão senhora assim.
Você está aí, desse outro lado, no mundo das pessoas sem segredos coletivos e talvez esteja aí nossa dissintonia, esteja aí a razão de eu sentir tanta cumplicidade em todo o resto do mundo que não é você.
Daí eu chego do trabalho e você já está aí sorrindo com toda a sua leveza, e pelo menos eu posso imaginar, que quando você fica aí olhando a janela, não está pensando em todas as pessoas que vivem nesses tantos apartamentos e se perguntando se alguma delas não poderia te fazer mais feliz. Você não deve estar fazendo isso, porque é isso que muitas pessoas fazem em segredo coletivo, procuram outras janelas, onde mora uma felicidade ideal. Daí você vem na minha direção com um copo de alguma bebida e eu fico ouvindo esse zumbido que é a nossa musiquinha fora de sintonia, a música que a gente acaba gostando tanto de ouvir. Se um dia desaparecer, vai ficar um silêncio muito doído, mas eu também vou me acostumar, porque a gente vai se acostumando com os silêncios que as pessoas deixam quando vão embora.
Difícil é se acostumar com a música fora de sintonia, que na verdade talvez sejam nossas duas músicas tocando ao mesmo tempo e a gente nunca tenha reparado nisso: estamos ouvindo coisas diferentes, juntos. Você me dá um gole do que está bebendo e tudo pra você parece estar perfeitamente bem.
Você entra no banho, e eu passo o tempo do seu banho, pensando em perguntar o que você faz quando o condicionador sai em excesso, e fico pensando que você pode responder que isso nunca aconteceu, o que seria um completo absurdo, um sinal chocante de que você se adapta imediatamente às novas situações da sua vida, em qualquer quantidade. Ou você pode me responder que não faz nada, que só lamenta, e quando você sai do banho, eu concluo que não é seguro fazer essa pergunta, porque talvez eu queira continuar ouvindo nossa música sem sintonia, e que talvez você depois do banho dê alguma risada silenciosa olhando a tela do seu celular. Isso talvez seja algum segredo coletivo só seu, dessa sua parte do mundo em que eu não vivo. Quem sabe a gente possa viver assim sempre assim pra sempre.
O conto
Segredos Coletivos, de Mariana Salomão Carrara, de São Paulo/SP, conquistou o 1º lugar na categoria Contos no 38º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2015. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Louise Dav / Pixabay.
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