Joela – por Odemir Tex Jr
Uma ambulância rasga o silêncio da noite.
As horas escuras em uma cidade são frágeis, nelas a pressa dita os passos. Uma cidade carrega suas ruas como veias escuras; e quando os carros cortam estas horas, em seu fluxo de borracha e anseio, os passeios são como varizes prontas a romper a qualquer momento. No asfalto uma mancha de óleo sob a luz do poste lembra sangue. O bueiro escuta o trottoir das putas e engole um rato assustado. A cidade se esgota em sua multidão, na sua capacidade de gerir o seu tumulto. É assim todo dia. Uma cidade é um romper de cordas. É um jogo de equilíbrio permanente. Nos esconsos dela também o amor resiste.
Joela, somente uma toalha na cabeça, sai do banho. A gilete já retocou suas virilhas. Corta seu corpo, 40 anos de solidão. A mãe é só uma sombra na lembrança, quando o lúpus a consumiu. O pai não consta na identidade. Morou em abrigo para meninas. Hoje é somente alguém só. Dentro de sua coleção de abandonos, a beleza lhe deixou na puberdade. Certo que tem um quadril generoso, mas falta-lhe certo gracejo ao andar. Seios rijos, a benesse do pouco tamanho. Os óculos atrapalham a beleza dos olhos. Fez curso de secretariado no SENAC, também datilografia. Na parede da sala ostenta com orgulho e uma moldura dourada seus dois diplomas. Mesmo sem conhecer o artista, uma reprodução de Cézanne completa sua pinacoteca afetiva.
A sorte de Joela começou a mudar quando conheceu Moacyr. Almoçava um prato-feito no intervalo do escritório contábil no qual trabalhava. Ele, rosto quadrado. Viril. As mangas da camisa arremangadas. E um brando pedaço de couve pênsil no bigode farto. Mesmo tentando encobrir com a mão, ela não segurou o riso. Ele percebeu e foi em direção a ela. Olha para os lados rezando que não seja com ela. Suspirosa, no seu mais recôndito desejo, quer que seja com ela. Então, aquele cheiro acre e intenso se para a poucos palmos. A moça ri muito, diz Moacyr. Joela derrama vermelho pelo rosto, transparece. A moça é muda?! Põe a mão sobre a dela e senta a sua frente. Liquefeita, permite.
Retorna do almoço com o estômago cheio e um convite para um chopinho depois do expediente.
Horizonte se estica, um sol de esperança se deita. Joela e Moacyr se encontram e um bar pouco convidativo do ponto de vista dos sonhos românticos dela. Sob a toalha xadrez da mesa ele, sorrateiro, ensaia um ataque: a mão desliza pela saia até o cume das coxas. Constantinopla ainda resiste. Joela afasta a mão com alguma violência. Moacyr sabe que aquela é a mulher de sua vida.
Já dentro de um hobby atoalhado, Joela caminha pela sala. Liga o som 3 em 1. “Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas On a vu souvent Rejaillir le feu De l’ancien volcan Qu’on croyait trop vieux Il est paraît-il Des terres brûlées Donnant plus de blé…” na voz de Maysa. Pouco sabe de francês. Se engalfinha com a linguagem e acompanha a música. Hoje é um dia especial, aniversário de Moacyr. Fez lasanha e doces e comprou vinho e uma sidra para brindarem. Sob o roupão, uma fita mimosa faz laço no cós de sua calcinha. É presente para seu homem. Uma flor rubra. Rosa em pétalas. A primeira noite do resto de sua vida. Abre um vinho. É preciso relaxar. Enquanto isso, se esmera em tenros e ternos detalhes. Olha o relógio na parede, agora são 9 horas e 8 minutos. Pelo horário combinado decreta-se o atraso: 9 horas. Ansiosa, dá pouca importância. O tempo aumenta junto com o álcool. Um sustenido a mais de ira lhe vem na voz. Aquele desgraçado! Sente um cheiro quente que vem da cozinha. A lasanha que sirva de adubo! Com dificuldade, arranca a rolha da segunda garrafa. Que nunca mais apareça! Pra mim você morreu, Moacyr!
A cidade é um grande leito pedregoso coberto por um rio de piche. Nela barcos negros com cascos de aço singram velozmente. Atravessar uma rua é diferente de cruzar um rio. Contudo, se repete aquela máxima, do filósofo, mudamos a cada travessia. Na urbe, as luzes mortiças desvendam qualquer cheiro e qualquer choro. A cidade de todos, sobrevive. Morre um anônimo e ela, benevolente ou irônica, pari (num barranco ou entre macegas) outra vida.
Moacyr, nu, sai do banho. Arreganha as gengivas e confere os dentes. O bigode está bem aparado. Acompanha a linha quadrada da maçã do rosto. Lá na boite, que frequenta com certa assiduidade, as meninas o chamam de Charles Bronson. Pensa que não voltarão a chamá-lo assim. Agora, seu desejo é ter uma família. Cresceu pelas ruas. Muito cedo fugiu de casa e do pai bêbado. Está escrevendo uma nova história para si e para os seus. Os olhos de Joela o comoveram. Olha com admiração a caixinha preta a sua frente com um par de alianças.
Perfumoso, embarca no ventre do ônibus que o levará até a sua futura esposa. Os devaneios, no caminho, nocauteiam o tempo. Já é hora de desembarcar. Da parada onde está, ao longe, vê a luz pálida que emana, solitária, do quarto andar do prédio escuro e antigo e pequeno em que mora Joela. O Opala-oito-canecos ébrio não percebe a distração e os olhos idílicos de Moacyr. Esquece de frear, ou mesmo parar!, sua carcaça letal, e segue seu caminho de pressa e morte. Um cão se aproxima e lambe a cor vermelha (que lembra óleo) que escorre pela perna retorcida de Moacyr.
“Et quand vient le soir Pour qu’un ciel flamboie Le rouge et le noir Ne s’épousent-ils pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas…”, pela quinta vez a voz embriagada de Maysa percorre o quarto de Joela. Sentada no sofá, olha merencóricapara o quadro junto a seus diplomas. O que passa pela cabeça de uma pessoa quando decide pintar uma caveira em meio às frutas, se pergunta. Joela nunca ouviu falar de Cézanne. Nem nunca soube que o nome do original de seu quadro se chama Nature Morte au Crâne. E sabê-lo talvez pouco mudasse sua vida. O contraste de luzes ela percebe quando, ainda no ônibus, a caminho do trabalho, vê os primeiros raios de sol cortarem as sombras que se esfarelaram da noite. A vida e a morte são somente um quadro. Indissociável. Absoluto.
Sem notícia alguma de Moacyr e esperando a raiva desaguar no último copo de vinho, pede – em pensamento – que o seu homem também não a deixe só. Não me deixe, não me deixe, não me deixe. Ne me quitte pas…
O conto
Joela, de Odemir Tex Jr., de Santa Maria, conquistou o Incentivo Local na categoria Contos no 40º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2017. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Pixaline / Pixabay.
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