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Contrapino – por Pylla Kroth

Veio ao mundo “fraquito”, tão “esmirrado” e “chochinho”, que ao seu finado padrinho disse à comadre: “Virgem do Céu, Santo Padre! Isso é gente ou passarinho?” Lembrando Ramiro Barcelos na poesia “Antonio Chimango”, o guri veio ao mundo. Lá pelas bandas de Marau. “Seguidamente ele vem com as histórias do gurizinho”, diz a mulher do vivente. Pois é deste mesmo que hoje vou lhes contar algumas coisas!

Aos 9 anos era vendedor de picolé e bergamotas, aos 10 anos foi babá de um casal de gêmeos, pois a mãe deles não conseguia cuidar o tempo todo e o contratou para auxiliá-la. Mais tarde, foi convidado a entregar fonogramas na CRT, e depois, acabou contratado como entregador do jornal Correio do Povo. E finalmente, aos 13 anos, assinou pela primeira vez sua carteira de trabalho, como cobrador de ônibus.

Seu apelido era “Contrapino”, dado a sua fisionomia pequena e “fininha”, feito um contrapino, que é aquela pequena clavilha de metal que se utiliza junto a um parafuso para manter segura uma porca ou arruela. Vendeu passagens no balcão da rodoviária, foi tipógrafo e entrou para as oficinas de jornais do interior gaúcho. E como parecia passarinho, como diria a comadre, desde que nascera cantava. Em cada emprego, várias histórias, várias lembranças, ora amargas, ora doces, porém sempre cevadas no coração.

Havia um tempo lá no “fundão de meu Deus” em que ir para a cidade era um evento. Estradas de chão batido que em dias de chuva eram como um sabão e um atoleiro só e a boa opção era ir de ônibus de linha, como diziam. O Contrapino, como cobrador, era pau pra toda obra. Entrava embaixo dos ônibus com correntes nas costas para abraçar os pneus gigantes dos baús em dias de lamaçal. Descia nas paradas a beira das estradas para auxiliar os passageiros a colocarem seus pertences nos bagageiros.

Levavam de tudo um pouco para a cidade, pois a moeda forte era a troca, o escambo. Galinhas, sacas de feijão ou milho e outros tantos utensílios que seriam permutadas por tecidos, remédios, querosene e provisões diversas.  Seu chefe, dono da empresa, se orgulhava de um menino tão novo e eficiente, quando os passageiros vinham lhes confidenciar seus feitos prestativos. Diariamente o próprio dono da dita empresa aguardava seus ônibus chegarem à estação rodoviária da cidade sede.

Numa dessas ocasiões, a alguns quilômetros antes da chegada na próxima cidade do itinerário, onde seu chefe fazia “posto”, teve uma parada. Contrapino desceu para colocar as malas no bagageiro. O coletivo estava abarrotado de gente e o motorista não tinha visibilidade do guri, esperava enfim o grito costumeiro do medonho, “Feitooo!”, para saber quando já podia arrancar o ônibus. Sendo assim, ele entrou no bagageiro pra acomodar as malas e duas latas de banha e nisso um gaiato apressado de dentro do ônibus gritou “Feitooo!” e o motorista fechou a porta e arrancou o velho FNM.

Estava chovendo e logo na largada houve uma derrapada patinando e Contrapino dentro do bagageiro sentiu o “Blam!” do gavetão se fechar. Tratou de se agarrar no escuro do porão do ônibus. “Fazer o quê?” pensou ele. Logo o ônibus chegava à cidade mais próxima e o motorista estranhou quando gritou pelo guri e este não lhe respondeu. Mas tratou de pegar logo as passagens dos passageiros, que naquele tempo entregavam o bilhete na saída.

Nisso, o chefe apareceu na porta e gritou para o motorista: “Mas cadê o Contrapino?”, e este lhe respondeu que devia estar tirando as bagagens! O velho olhou para o lado dos gavetões de bagagens e bravo gritou de volta: “Aqui ele não está!” Pois um número grande de passageiros esperava por sua bagagem ao lado e nada. Foi quando alguém falou: “Não quero dizer nada, mas acho que escutei alguém gritando no bagageiro!” O velho rapidamente abriu o tampão.  E lá estava Contrapino, olhar esbugalhado, e agarrado em uma lata de banha, lamentou: “Me trancaram aqui!”. Foi aquela gargalhada do povo! (risos)

Com o passar do tempo e alguns aprontes sem explicação decente, o guri estava prestes a ser demitido pelo padrão dono da empresa, que já percebera o guri era muito novo para a “lida”, apesar da sua eficiência, e estava quase cedendo aos palpites do restante da frota que lhe aconselhava “se ver livre do guri” pelo fato deste ser muito novinho, o que numa hora dessas poderia dar uma complicação maior.

A coisa andava assim quando num belo dia o ônibus cumpria seu trajeto normalmente pela estrada de chão afora e Contrapino percebeu que o motorista estava “estranho” e com a cara meio pálida. Não titubeou e sentou no capô do motor e puxou conversa com ele para verificar o que se passava. Ocorreu que o motorista não lhe respondeu, nem de imediato nem muito menos vários segundos depois e simplesmente foi deitando a cabeça para um lado, acabando por desfalecer num mal súbito.

Contrapino saltou, colocando as mãos no volante e gritou para os passageiros: “Socorro! Ele desmaiou!”, e imediatamente sentou de lado, dividindo o banco com motorista desmaiado, enquanto um ágil passageiro correra para o auxiliar, e foi tratando, com toda calma possível, parar aquele gigante de seis rodas. O que acabou de fazer com sucesso sob o aplauso da galera.

Mas e agora? Motorista desmaiado no meio do caminho e faltando uns cinco quilômetros de percurso. Quem vai dirigir?  Precisavam tomar uma decisão rápida, pois mais do que apenas chegar ao destino, o motorista precisava de cuidados médicos. No ônibus fez-se aquele silêncio!  Dos vinte passageiros ninguém sabia pilotar aquele ônibus “queixo duro, caixa seca”, que era tarefa apenas para motoristas bem treinados com experiência, especialmente por aquelas estradas de chão, e ninguém se atrevia se oferecer.

Então o Contrapino com voz de Capitão falou pra todos: “Calma pessoal! Eu vou na boleia! ” Foi aquele espanto geral! Mas não havia outra saída. Um dos passageiros, com medo, pediu pra descer por ali mesmo. O guri gritou novamente: “Mais algum covarde vai se atrever descer e deixarmos o motorista morrer?”Foi aquele silêncio mais uma vez. Assim, sem mais objeções, o guri ligou a “onça” e com toda habilidade se foi embora, levantando a poeira da estrada.

Alguns passageiros se sentaram, mas a maioria ficou em pé, teve uma senhora que até rezar “Ave Maria” em voz alta rezou. Mas acabou que foi assim, diante dos olhos estarrecidos de seu patrão, que aguardava como de costume a chegada do ônibus na rodoviária, Contrapino estacionou o veículo. Trataram de socorrer primeiramente o motorista, que com apenas água no rosto e nos pulsos voltou a si e logo foi encaminhado para o médico. Os passageiros então falaram em voz alta: “Este guri foi quem nos salvou!”.  Ao que o patrão dele, novamente orgulhoso, exclamou: “Eu nunca me enganei com o guri!”.

Nunca mais depois dessa ocasião  o garoto dirigiu um Brutus daqueles, mas guarda eternamente na memória seu “dia de herói”. E fica ainda a lembrança e a gratidão de quem lhe oportunizou seu primeiro emprego – Seu Emilio Theis.

Saiu da empresa algum tempo mais tarde para completar o ensino básico. Alguns anos depois caiu no mundo e virou cantor. Chegou aqui na Aldeia Santa a convite de Luizinho de Grandi para trabalhar em A Razão, paralelamente a vida de cantor. “Hoje o bicho tá famoso! É cria de várias rimas!”, como diz o cantador gaúcho, não é mais aquele magrelo “esmirrado”. E vai ser homenageado e desta vez como cantor.

Ele faz isso há 35 anos aqui na Aldeia de Santa Maria, onde acabou vindo parar. Cantou e ensinou várias gerações a fazerem do canto sua guerrilha cultural. Atende pelo nome artístico de Pylla Kroth e fez do rock não apenas um ganha-pão, mas principalmente um estilo de vida. Seu altruísmo maior sempre é querer ajudar e passar adiante o legado que fundamentou na música.

Pouca gente sabe seu nome, muitos o chamam pelo apelido, mas apenas alguns conhecem sua verdadeira história fora dos palcos. Viveu feliz sem grana e sabe que ninguém precisa ser rico de cifras pra ser feliz, embora rico de boa vontade, de gosto e amor pelo ofício que tanto ama, rico de amizades sinceras e laureado de carinho daqueles que o admiram.

Próximo sábado, dia 25, às 20h no Theatro Treze de Maio, ele não estará no palco. Algum problema de saúde ou impedimento que mova seu corpo (ainda esguio) frente a um microfone? Que nada! Ele nunca esteve melhor. Já pensa em novo disco e até virou cronista do site de um tal Claudemir Pereira.

Estão falando de homenagem em vida… Assim, o cantor de rock vai estar na plateia do Theatro Treze de Maio, assistindo a reinvenção de sua obra e do espírito das músicas que tanto cantou. Quem diria, Contrapino? Santa Maria Cantará Pylla… E lá estarei eu, você, as pessoas que compartilho as mesmas calçadas e avenidas, meus amigos, irmãos e fãs que conquistei ao longo da minha vida. Que venha a emoção dessa noite! Nos veremos por lá.

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