Contos

Coisa de barão – por Vitor Biasoli

Quando Giovani comprou a primeira casa em Uruguaiana, lembrou-se do avô de chapéu de palha na cabeça, preparando a lavoura com um arado puxado por boi.

Tudo tem um início, pensou. O avô chegara menino da Itália, junto com os pais imigrantes, na Colônia de Silveira Martins. Mais tarde, já casado e com filhos, ele saiu da Colônia e comprou a propriedade de uns negros e nunca mais a família parou. Os tios e o pai de Giovani foram descendo para o sul, arrendando terras na Campanha, de famílias que passaram a morar na cidade, e depois comprando as fazendas. Os tios tinham o jeito humilde de colono, o pai se deu ares de gente importante e quis se emparelhar com os maiorais. Não deu certo. O avô manteve os modos rudes de colono e, quando morreu, deixou imenso patrimônio. O pai de Giovani quase pôs tudo a perder, até que o filho meteu a mão nos negócios e garantiu o que pode. Agora, olhando o palacete recém adquirido, pensou também no velho – com saudade e ressentimento. Fora ali que o pai tivera uma segunda família, com mulher morena, de família, e uma penca de filhos – a grande tristeza da mãe.

Na porta da casa, observando o lustre que havia no hall – que vinha do teto e se abria em uma dezena de lâmpadas e vários pingentes – ponderou se aquilo não era um despropósito. O lustre, a escada de mármore que dava para o segundo piso – o que era aquilo, meu Deus?! A mulher passou por ele, disse que avaliara as reformas necessárias e perguntou se valia a pena tanto investimento. “Valer não vale”, ele respondeu, “mas este gosto eu quero ter na vida. Acho que devo ao meu avô, ao meu pai, principalmente ao pai, que quis ser gente nessa cidade e não conseguiu.” A mulher resmungou qualquer coisa como “o que de gosto regala a vida” e continuou a vistoria. “Mas que esta reforma vai nos levar os olhos da cara, isto vai”, ela arrematou, rindo e dizendo que também ia lavar a alma ao se instalar no casarão.

Foi então que um homem passou a acompanhar a reforma do outro lado da rua. Era um professor da escola estadual das redondezas, que passava por ali todas as manhãs e ficava um bom tempo observando. Depois de uma semana parando na frente da casa, os operários contaram para o patrão. “Eu vi a figura”, Giovani falou, “é um dos netos da dona que vendeu o palacete.

Um sujeito manso, de muita leitura, não tem problema.” O professor continuou as visitas, sempre parado na calçada, e um dia pediu para entrar. Os operários se olharam, disseram que o patrão não estava e o homem explicou que só daria uma volta pelo jardim, não entraria no interior da casa, que bastava olhar das portas e janelas abertas, ver o lustre do hall de entrada, ver como as coisas estavam indo. O professor deu uma volta pela casa inteira, depois ficou parado nos degraus que davam acesso à entrada e suspirou diante da vista: as portas abertas, o lustre sem poeira brilhando, a escada de mármore logo atrás… De repente, sua mão direita foi para trás, posicionou-se para jogar alguma coisa – até que um dos operários percebeu a intenção do gesto e saltou na sua frente.

– O que é isto, vivente? Tá ficando louco? – gritou o operário, tirando a enorme pedra que o homem tinha na mão e o empurrando para fora do jardim, para a calçada. – Nunca mais apareça aqui, filho de uma égua, que te arranco os bagos.

O professor saiu resmungando, dizendo que não deixaria aquilo para ninguém, para ninguém mesmo, e nem notou que cruzou com Giovani. Um Giovani de cabeça erguida, examinando as telhas da casa – muito mais limpas, agora – e lembrando que o avô provavelmente diria que era um gasto desnecessário, um desperdício, uma coisa de barão.

O AUTOR

Nasceu em Pelotas, em 1955. Professor de História, formado pela UFRGS (1977), Veio para Santa Maria em 1991 e lecionou na UFSM. Vitor Biasoli, atualmente, está aposentado. Prepara o lançamento de um livro de poemas, Paisagem Marinha, e finaliza um romance, Os caminhos de Santa Teresa.

Este conto foi publicado com autorização do autor. Crédito da imagem no topo da página: Peter H / Pixabay

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