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A anormalidade permanente argentina – por Leonardo da Rocha Botega

“No lugar do consenso democrático, surge a negação dos crimes de Estado”

Em 1994, o historiador argentino Tulio Halperín Donghi publicou, com o título de Argentina en el callejón (Argentina em um beco), uma coletânea de textos escritos entre 1955 e 1964. Em um destes textos, 1930-1960: Crónica de trienta años, propôs que a crise político-social, vivenciada pelo país naquelas três décadas pós-decadência da economia agroexportadora, não era algo anormal, mas sim, o único clima histórico vivenciado por várias gerações. Tratava-se de uma anormalidade permanente.

A expressão daquela anormalidade no campo político foram os golpes de Estado de 1930, 1943, 1955, 1962 e 1966. No campo econômico, o país assistiu a uma sequência de diversas tentativas de redefinições que passaram pela busca do “eterno retorno” liberal, pelo nacional-estatismo peronista e pelo desenvolvimentismo frondicista. Todas fracassaram na instabilidade política de um processo marcado pelo enfrentamento entre os “novos” atores sociais, representados pelo peronismo, e as “velhas oligarquias”.

A falta de uma nova síntese política, econômica e social, agravada entre 1955 e 1973 pela exclusão da principal força política argentina pós-1945, o peronismo, resultou no drástico golpe de 1976 e, consequentemente, no Terror de Estado que prevaleceu até 1983. Findada a Ditadura Civil-Militar, a instabilidade política, um dos pilares da anormalidade permanente, deu lugar a um consenso democrático marcado pela punição aos responsáveis pelo desaparecimento e assassinato de cerca de 30 mil argentinos.

Esse consenso democrático, que impediu três tentativas de golpes de Estado ao longo do governo Raúl Alfonsín (1983-1989), não foi acompanhado pela estabilidade econômica. O outro pilar da anormalidade permanente foi fortemente agravado no Período Ditatorial. A dívida externa saltou de 8 bilhões de dólares em 1975 para 45 bilhões de dólares em 1983.

O PIB por habitante decresceu 20%. A indústria manufatureira e a construção decaíram, respectivamente, 12% e 28%. A participação dos assalariados na renda nacional caiu de 45% para 26%. Já a inflação, que ao longo de todo o período ditatorial nunca foi inferior a 100% anual, chegou a 350% em 1985.

Assim, se de um lado, a redemocratização argentina é marcada pela afirmação dos valores democráticos; de outro, a economia seguiu perdida no beco. Setores significativos do parque industrial foram destruídos e o mercado interno foi profundamente desestruturado.  Uma destruição e uma desestruturação que se agravaram com a ascensão do neoliberalismo nos anos 1990.

A sensação inicial de modernidade aparente no governo Menem resultou no “Argentinazo” que derrubou o governo De La Rúa, em dezembro de 2001. Em poucos dias, a insegurança econômica dos mais pobres fez naufragar o campo político, mas não o consenso democrático.

Deste naufrágio brotou um peronismo renovado e revigorado pelas lutas da juventude e dos piqueteros: o kircherismo. Os governos Nestor e Cristina (2003-2015), apesar de terem promovido significativos avanços, sobretudo no campo trabalhista, com a redução da taxa de desemprego de 19% (2003) para 7,1% (2015), não conseguiram redefinir em termos estruturais à economia. Não houve uma solidificação do mercado interno e as estratégias de crescimento econômico se esgotaram sob os efeitos da crise global iniciada em 2008. 

Da oposição conservadora ao kircherismo surgiu o macrismo que chegou ao governo em 2015. O governo Mauricio Macri (2015-2019) é marcado pela reversão do experimento kircherista a partir de um neoliberalismo tardio. O resultado foi desastroso. A promessa de “pobreza zero” com austeridade não se concretizou.

O PIB sofreu retração em três dos quatros anos, o desemprego chegou à 10%, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza foi para 35% e a inflação para 56% ao ano. Para completar o quadro, um empréstimo de 57 bilhões de dólares junto ao FMI excedeu em 127 vezes a capacidade de endividamento do país.

A renegociação da dívida argentina se tornou o primeiro grande desafio do presidente Alberto Fernández, que tomou posse em dezembro de 2019. Fernández, que foi chefe de gabinete durante todo o governo de Nestor Kirchner, rompeu com o kircherismo em 2008, quando a presidenta argentina entrou em atrito com Martín Lousteau, então Ministro da Economia. Ficou afastado da política até 2015, quando retornou para coordenar a campanha presidencial de Sérgio Massa, representante do “peronismo moderado”.

Sérgio Massa foi alçado à condição de Superministro da Economia do governo Alberto Fernández em julho de 2022, em substituição à Martín Gúzman. Após liderar a reestruturação da dívida argentina com o FMI e conduzir a economia do país em meio à Pandemia, Gúzman não conseguiu apoio político para avançar em suas medidas. Massa surgiu como o homem capaz de unificar o peronismo, dialogar com a oposição e construir saídas para a crise econômica. Nada feito!

O resultado foi o aumento do número de pessoas na linha da pobreza para 40% da população argentina. A inflação anual, que era de 60% em julho de 2022, quando Gúzman deixou o governo, aumentou para assustadores 143%. Uma situação que contrasta com o menor índice de desemprego dos últimos dezessete anos, 6,2%. Talvez esse dado, e somente esse do ponto de vista econômico, possa explicar o porque de Sérgio Massa ter sido o candidato à presidência nas últimas eleições.

O governo Alberto Fernández, bem como, os governos que o antecederam ao longo das últimas décadas, desde a quase centenária crise de 1929, não conseguiram estancar o lado econômico da anormalidade permanente argentina. Paradoxalmente, deste não estancamento, mais uma vez, volta a brotar o outro lado desta anormalidade. Javier Milei é a pior negação política que surge da anormalidade permanente argentina nesse século XXI.

No lugar do consenso democrático, surge a negação dos crimes de Estado. No lugar das saídas solidárias, surge o salve-se quem puder como solução. No lugar da luta por justiça social, surge a negação da sociedade.

A aberração ideológica chamada anarcocapitalismo, propagada por Milei, nada mais é do que o aprofundamento da desestruturação social. Uma desestruturação que a incapacidade de romper com as estruturas da anormalidade permanente por parte do progressismo moderado transformou em opção para a desesperada sociedade argentina.               

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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6 Comentários

  1. Questão toda é a conjuntura que o pais se encontra. ‘Situação é A e queremos que seja B’. Existe forma disto acontecer? Tenho duvidas. Passaram do ponto sem volta faz tempo. Não tem narrativa ou mimimi que faça melhorar as coisas. Usar propaganda para fingir que as coisas melhoraram não resolve também. Pior é que a população se acostuma com as condições deterioradas, começa a crer que é normal. Se acomoda. Serve para os correntinos e para os que esperam na fila do SUS.

  2. No inicio dos 2000 a Argentina teve 5 presidentes em duas semanas. Roma teve 4 Imperadores em um ano. Mais um recorde quebrado. Time que está caindo para a segunda divisão costuma ter varios tecnicos. Ou seja, de la para cá foram só band-aids na economia correntina.

  3. ‘[…] incapacidade de romper com as estruturas da anormalidade permanente por parte do progressismo moderado […]’. ‘Progressismo’ é um virus que ataca o cerebro e impossibilita qualquer forma de raciocinio.

  4. ‘No lugar das saídas solidárias, surge o salve-se quem puder como solução. No lugar da luta por justiça social, surge a negação da sociedade.’ O nome disto é ‘realidade’ e a causa é ‘natureza humana’. Utopistas não conseguem captar a ideia.

  5. Argentina no inicio do sec. XX tinha padrão de vida semelhante a França, Alemanha e Canadá. Educação? Cinco Premios Nobel. Paz duas vezes. Dois de Medicina/Fisiologia. Um de quimica.

  6. ‘Argentina en el callejón’. Por aqui poucos leram. Logo não tem importancia. ‘[…] negação dos crimes de Estado.’ Quem tem um oitavo de neuronio esta c@g@ndo para ‘crimes de Estado’, principalmente com a sobrevivencia sob risco. ‘Javier Milei é a pior negação política […]’, é o presidente eleito da Argentina, não professor nos cafundós do Judas. Para uns falta espelho em casa.

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