O Homem do Subsolo e a Arte do Caos – por Amarildo Luiz Trevisan
O livro (de 1864) que prenunciava a genialidade do escritor Fiódor Dostoiévski
“Memórias do Subsolo”, de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1864, antecede a fase mais fértil do autor, prenunciando a genialidade que se consolidaria dois anos depois com Crime e Castigo. A narrativa, conduzida em primeira pessoa, é uma espécie de confissão amarga de um homem consumido pela raiva e pela contradição. Ele se diz inteligente e culto, mas é um ser em perpétuo atrito com o mundo e consigo mesmo – brigando com seus pretensos amigos, enfrentando seu mordomo Apollon e, no desfecho, ferindo Liza, uma jovem de 20 anos com quem vive um breve e tumultuado romance, iniciado de forma casual em um bordel.
O romance antecipa questões que só viriam a ser plenamente desenvolvidas pelo Existencialismo e pela Psicanálise. Frases como “Estou convencido de que o ser humano jamais vai abrir mão do sofrimento verdadeiro, ou seja, da destruição e do caos” (p. 62) ressoam diretamente com o conceito freudiano do instinto de morte, aquele impulso subterrâneo que conduz o ser humano de volta ao inorgânico. Por sua vez, imagens da rua como “Na escuridão nevada, lampiões desolados cintilavam tristonhos, como tochas num cortejo fúnebre” (p. 128) poderiam facilmente figurar em um romance de Sartre ou Camus, evocando o absurdo da existência.
O grande mérito de Memórias do Subsolo está na sua coragem em dar voz ao ressentimento e à hostilidade, mostrando que a literatura pode transformar até mesmo as pulsões mais destrutivas em matéria-prima artística. Se o amor constrói, a raiva também pode ser uma força criativa – desde que seja direcionada para algo além da própria ruína. O narrador, porém, falha nesse processo: suas iniciativas são inglórias, seus gestos oscilam entre amor e ódio, entre admiração, culpa e arrependimento.
O que fica, ao final, é a amarga constatação de sua incapacidade de equilibrar esses extremos. Memórias do Subsolo nos ensina que a destruição pode ter um papel pedagógico na literatura, mas a vida exige mais do que a arte permite: exige a capacidade de saber conduzir as próprias paixões com civilidade – algo que o homem do subsolo jamais conseguirá alcançar.
Referência:
DOSTOIÉWSKI, Fiodór. Memórias do subsolo. 1ª ed. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras. 2021.
(*) Amarildo Luiz Trevisan é professor do curso de Ciências da Religião e do PPGE/UFSM.
Um dos problemas, traduçoes de Dostoiewsky são minimamente decentes em portugues.