O legado de Joseph Nye, teórico do ‘soft power’ – por José Renato Ferraz da Silveira e Davi Lôbo Todeschini
Os articulistas e quem foi esse pensador norte-americano morto no último dia 6

Falecido na terça-feira (6), Joseph S. Nye – o teórico do soft power – ocupou cargos de primeira linha, em particular no Departamento de Defesa, durante a presidência de Bill Clinton (1993-2001). Autor de 14 livros e inúmeros artigos, contribuiu na década de 80 com o conceito de soft power, no qual se refere a uma diplomacia de influência ou de atração, em oposição à uma política de coerção.
Em linhas gerais, o “soft power”, refere-se à capacidade de um país influenciar outros através de atração e persuasão. Ou seja, é a capacidade de um país fazer com que os outros desejem o mesmo que ele, baseando-se na cultura, valores, ideais políticos e políticas. Alguns exemplos: a cultura pop japonesa, como anime e mangá, o cinema e a música popular brasileira são exemplos de soft power em ação.
No seu último ato como inquisitivo pensador, Nye fez uma avaliação severa de Donald Trump, que desde o regresso à Casa Branca empenhou-se em destruir o “soft power” dos Estados Unidos. “Trump não percebe o poder. Só pensa em termos de coerção e ganhos”, escreveu em mensagem eletrônica enviada à AFP, em fevereiro. O êxito dos Estados Unidos durante as últimas décadas foi baseado na atratividade”, disse Nye.
Pelo visto, demorará para os Estados Unidos recuperarem a credibilidade e a confiança.
Nye, em uma entrevista para a BBC Brasil ainda em março de 2025, descreve Trump como um líder personalista, similar aos caudilhos latino-americanos em sua preocupação carismática de atender os interesses de uma parcela minoritária da sociedade americana. Assim, Trump não teria uma ideologia norteadora e estaria menos limitado por preocupações morais.
Todavia, por mais danos que o atual presidente estadunidense possa causar à estrutura de soft power americana, o célebre autor destaca que o Soft Power americano já passou por retrações severas como durante as guerras do Vietnã e Iraque, mas que mesmo assim houve um ímpeto bem sucedido de reconstrução desse poder de cooptação pela atração. Segundo ele, a maior parte do soft power não vem do governo, mas sim da sociedade civíl estadunidense. “As pessoas querem assistir a filmes de Hollywood. Elas querem entrar em Harvard ou em universidades americanas em geral. Isso não vai ser prejudicado.” segundo Nye.
Vale ressaltar que, por mais prestígio que os elementos de soft power estadunidense ainda possuam, Trump promove ataques diretos a eles em seu governo ao perseguir estudantes estrangeiros dentro de Harvard e acusando a prestigiada universidade de ser “antissemita” e “uma ameaça à democracia”.
Além de suas contribuições conceituais à teoria das relações internacionais, Joseph Nye também expressou preocupações institucionais sobre o papel declinante dos acadêmicos no processo de formulação de políticas públicas. Em seu ensaio “Scholars on the Sidelines”, Nye observa que, ao contrário de momentos históricos em que figuras como Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski transitaram com naturalidade entre o mundo universitário e o alto escalão da política externa, a academia de hoje parece cada vez mais isolada em sua torre de marfim.
Nye destaca que essa crescente distância entre teoria e prática não é culpa exclusiva do governo, mas sim resultado de uma cultura acadêmica que desincentiva o engajamento com questões de relevância prática. Em vez de formularem ideias úteis para os formuladores de políticas, muitos acadêmicos concentram-se em modelos matemáticos, metodologias complexas e teorias cada vez mais inacessíveis ao público externo. Como resultado, afirma Nye, “o academicismo diz cada vez mais sobre cada vez menos”.
A ausência de acadêmicos no debate público não é inócua: ela compromete a qualidade da formação de novas gerações de estudantes e limita a influência da universidade na construção de uma ordem internacional mais reflexiva e informada. Nye argumenta que o engajamento com o mundo real não apenas melhora a formulação de políticas públicas, como também enriquece a própria prática acadêmica. Como alertou o ex-subsecretário de Estado David Newsom, se os professores abandonam o mundo em favor de modelos abstratos, comprometem a capacidade de formar estudantes capazes de interpretar e atuar sobre a realidade.
Mesmo diante de uma paisagem saturada por mais de mil think tanks nos Estados Unidos (muitos com viés ideológico e vínculos diretos com financiadores políticos) , Nye acredita que as universidades ainda são fontes relativamente neutras e qualificadas de conhecimento. No entanto, sem incentivos institucionais para o engajamento prático e sem maior tolerância a posições políticas impopulares, é improvável que esse cenário se reverta no curto prazo.
Em suma, o legado de Joseph Nye permanece como um alerta e uma bússola para tempos em que o poder se converte em instrumento de imposição, e não de inspiração. Ao desenvolver o conceito de soft power, Nye não apenas redefiniu os termos da política internacional, como também apontou caminhos possíveis para uma liderança baseada em legitimidade, atração e valores compartilhados.
Sua crítica contundente ao estilo coercitivo de Donald Trump, somada à sua preocupação com o afastamento da academia em relação ao debate público, reforça a urgência de se revalorizar o conhecimento como ferramenta de influência construtiva. Diante do declínio da credibilidade americana no cenário global, recuperar o soft power exige mais do que reverter medidas políticas pontuais: demanda o resgate de uma cultura de abertura, diálogo e compromisso ético. Nesse contexto, o pensamento de Nye segue como um legado intelectual e estratégico indispensável à reconstrução de uma diplomacia norte-americana orientada não pelo medo, mas pela confiança.
(*) José Renato Ferraz da Silveira, que escreve às terças-feiras no site, é professor Associado IV da Universidade Federal de Santa Maria, lotado no Departamento de Economia e Relações Internacionais. É Graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP e em História pela Ulbra. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Colunista do Diário de Santa Maria. Participou por cinco anos do Programa Sala de Debate, da rádio CDN, do Diário de Santa Maria. Contribuições ao jornal O Globo, Sputnik Brasil, Rádio Aparecida, Jornal da Cidade, RTP Portugal. Editor chefe da Revista InterAção – Revista de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) (ISSN 2357- 7975) Qualis A-2. Editor Associado da Scientific Journal Index. Também é líder do Grupo de Teoria, Arte e Política (GTAP)
Davi Lôbo Todeschini é graduando em Relações Internacionais pela UFSM e membro do Grupo de Teoria, Arte e Política (GTAP)
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