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A liberdade dos infantis – por Giorgio Forgiarini

E “não raro ela é evocada por uns justamente para cercear a de outros”

A palavra de ordem é “liberdade”. Hoje, muito se faz e mais ainda se diz em defesa de uma liberdade cujo conceito muito pouco se sabe, ou deliberadamente se ignora. A liberdade é princípio fundamental e direito universal, isso bem sabemos. Mas sabemos também, pelo menos nós, os menos ingênuos, que não raro a liberdade é evocada por uns justamente para cercear a liberdade de outros.

É uma questão de escrúpulos. Enquanto uns têm, outros não. Se uns possuem noção clara de limites comportamentais e hesitam em ultrapassá-los, impondo a si próprios freios morais justamente em atenção a um equilíbrio geral, outros fingem não existir tais limites, os exorbitam sem constrangimento algum e acabam por interferir nas liberdades alheias. É a liberdade sendo utilizada para tolher a… liberdade.

Parece paradoxal, mas não é. O ser humano, enquanto indivíduo, tende à competição, ao conflito e à autodestruição. Faz isso, não por maldade, mas por instinto de sobrevivência. É o chamado “estado de natureza” de John Locke e Thomas Hobbes. Nisso, creio que estavam certos, ao contrário de Rousseau, para quem o homem é bonzinho por natureza e o Estado o corrompe.

A ideia de Estado e, consequentemente, de limitação das liberdades, vem justamente para fazer cessar esse espírito de guerra permanente. Boa parte da população já conseguiu aderir a esse espírito. Outros, ainda não. Esse último grupo tem aumentado ultimamente, e isso é preocupante.

O bem estar coletivo está necessariamente ligado à limitação de liberdades individuais, assim como uma partida de futebol depende de regras e de um juiz para impô-las. Seria ideal se todos fossem conscientes quanto a seus próprios limites, como preconizava Immanuel Kant, mas não podemos contar com isso. No caso do esporte, a observância de regras visa garantir o dinamismo do jogo e evitar que um time tenha vantagem exacerbada sobre outro. Quanto à sociedade, a imposição de limites serve para evitar que uns se valham de sua liberdade para tolher a dos demais.

Hegel estava certo. Só é livre quem voluntariamente reconhece a existência de limites para sua própria liberdade e coloca sua liberdade a serviço da liberdade dos demais. Pode parecer paradoxal, mas ser livre não é fazer o que se bem quer, ao tempo em que se quer e do modo como se quer. É também ter a capacidade, a possibilidade e o discernimento de espontaneamente fazer aquilo que não se quer, pela simples consciência de não ser correto ou adequado.

No Brasil, para não irmos longe, a liberdade, ingênua ou pernosticamente mal conceituada, já foi (e às vezes ainda é) evocada para justificar a escravidão, o racismo, a misoginia e, mais recentemente, a profusão de mentiras (hoje suavemente chamadas de “fake news”).

Não é essa, no entanto, uma noção madura de liberdade. É uma noção infantil, inconsequente, típica de crianças mimadas, que se sentem frustradas por não lhes ser dado o sagrado direito de fazer xixi no tapete da sala, que acreditam que ser livres é poder exigir que só os outros tenham limites. Quando confrontados por qualquer maneira, esperneiam, choram, gritam e clamam pela presença do papai, ou, pela cassação dos poderes de quem ousa lhes restringir.

Sim, tudo isso é risível e patético, até certo ponto. Confesso que já me diverti muito vendo manifestações dessa gente de suscetibilidade tão aflorada, que fecha estrada e acampa em quartéis, mas uma hora isso enche o saco. Política não é joguinho de criança, sociedade não é parquinho e liberdade não é brinquedo.

(*) Giorgio Forgiarini é advogado militante, com curso de Direito pela Universidade Franciscana, é Mestre em Ciências Sociais e Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Ele escreve nas madrugadas de sábado.

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13 Comentários

  1. Resumo da opera. O rei está nu. Seria construtivo chamar as coisas pelo que elas são e trata-las de acordo. De forma direta. Falta ‘cojones’ para alguns fazerem isto. Não é misoginia, mulheres inteligentes não precisam de nota de rodape. As outras podem ir se lascar.

  2. ‘Política não é joguinho de criança, sociedade não é parquinho […]’. Bom avisar a classe politica e os servidores publicos. Supersalarios, aumento de carga tributaria, aumento de numero de acessores, 60 dias de ferias ou mais, exemplos não faltam.

  3. ‘Confesso que já me diverti muito vendo manifestações dessa gente de suscetibilidade tão aflorada, que fecha estrada e acampa em quartéis,[…]’. As coisas tem a importancia e o valor que colocamos nelas. Por ter coisa melhor para fazer prefiro ignorar. A vida é curta. Também não tenho a superioridade moral absoluta para sair policiando e julgando a humanidade.

  4. ‘[…] ou, pela cassação dos poderes de quem ousa lhes restringir.’ Sim, deveriam ‘apanhar’ quietos. Contrariando Dylan Thomas, ‘going gentle into that good night’. Deveriam abandonar a politica e nunca mais se candidatarem a nada.

  5. ‘É uma noção infantil, inconsequente, típica de crianças mimadas, que se sentem frustradas por não lhes ser dado o sagrado direito de fazer xixi no tapete da sala, que acreditam que ser livres é poder exigir que só os outros tenham limites.’ Não podia, na ausencia de argumentos, desqualificações.

  6. ‘[…] a liberdade, ingênua ou pernosticamente mal conceituada, já foi (e às vezes ainda é) evocada para justificar a escravidão, o racismo, a misoginia e, mais recentemente, a profusão de mentiras (hoje suavemente chamadas de “fake news”).’ Ou seja, quem não concorda com o conceito de ‘liberdade’ dos vermelhos é taxista, manobrista, paredista, etc. Alas, vermelhos, do alto da sua ‘superioridade moral’, não mentem. São o pinaculo da etica kantiana! Kuakuakuakuakuakuakua!

  7. ‘Hegel estava certo.’ Juizo de valor. Posso afirmar ‘Maquiavel estava certo’. Além de achar ruim os demais não podem fazer nada. Não muda absolutamente nada na vida de ninguem.

  8. ‘A ideia de Estado e, consequentemente, de limitação das liberdades, vem justamente para fazer cessar esse espírito de guerra permanente.’ Leviatã. Hobbes. Escrito durante uma guerra civil. Luta pelo poder. Uns 450 anos depois de João Sem Terra, Carta Magna e o inicio da constitucionalização. Para limitar o poder do soberano e, por consequencia, do Estado.

  9. ‘[…] os exorbitam sem constrangimento algum e acabam por interferir nas liberdades alheias. É a liberdade sendo utilizada para tolher a… liberdade.’ Não é liberdade, é disputa pelo poder. Etica kantiana, autonomia, dependem de um absolutismo moral e da razão. Só que do seculo XVIII para cá outras coisas aconteceram, a discussão sobre o papel das emoções, o inconsciente, etc. Eis outro problema, Academia fatia o Universo e os que saem muitas vezes não conseguem juntar uma coisa com a outra.

  10. Kant era conhecido como o relógio de Königsberg. Seria possivel acertar o relogio pela hora que saia para sua caminhada. Um alemão que viveu majoritariamente no século XVIII. Consta que morreu virgem, ou seja, a interface dele com a humanidade, apesar de ser popular, não funcionava direito.

  11. Filosofia não é ciencia, apesar desta ultima ter se originado da primeira. E muito menos religião. É uma inquirição no mundo das idéias. Academia e o pessoal do juridico não captou bem estes conceitos. Vide Barroso, discurso empolado e a cultura de vitrine para se travestir em ‘vanguarda iluminista’.

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