Por ATÍLIO ALENCAR (texto e fotos)
Ao chegar na escola Cilon Rosa, no centro de Santa Maria, já é possível perceber que algo diferente de uma greve convencional está acontecendo. As faixas que anunciam a ocupação da escola, que iniciou no dia 19 de maio, ornam os portões de acesso com letras grafitadas sobre os panos amplos. Antes de ingressar nas dependências da escola, sou orientado por duas meninas a informar o número do meu registro geral para o jovem que manuseia uma planilha de controle sobre a classe, numa espécie de guarita improvisada nos primeiros metros do corredor de entrada. Ninguém, exceto os próprios alunos e alunas, entra na escola sem passar por esse procedimento. Os poucos professores que circulam pelos corredores não estão no controle da ocupação: são visíveis coadjuvantes, apesar do apoio recíproco entre grevistas e ocupantes.
Já devidamente autorizado a transitar pela ocupação, sou acompanhado pelas duas meninas até o auditório em que será realizada a coletiva de imprensa, divulgada para as 15 horas de segunda-feira, 30 de maio. No caminho, vejo indicações de espaços restritos aos alunos, paineis expostos com os horários das refeições, a divisão das comissões de limpeza, alimentação, comunicação e segurança. Também estampam as paredes, além dos grafites com a tinta ainda fresca, reproduções de textos e frases de pensadores como Sartre, Bakunin, Simone de Beauvoir. Numa escada que leva ao segundo piso, um grupo forma uma pequena roda de violão. Quando paro para fotografá-los, a advertência: fotos só serão permitidas na visita guiada, que faremos logo após a coletiva.
Entramos no saguão em que a entrevista acontecerá. Sobre o palco, sentados, dois meninos e duas meninas. Bruno, Matteus, Kymberlli e Luíza não se dizem líderes da ocupação: são apenas os representantes circunstanciais indicados pelo movimento para receber a imprensa. Nenhum deles tem mais de 17 anos, e todos cursam o terceiro ano letivo do ensino médio. Entre os que estávamos lá para questionar a gurizada, além dos dois maiores jornais de Santa Maria – Diário e A Razão -,, também marcaram presença os coletivos de mídia independente, como a Revista O Viés e a Rádio Armazém.
Durante a conversa, que transcorreu em pouco mais de meia hora, as principais perguntas miravam os objetivos e a forma de organização da ocupação. Após uma breve explanação, quase em forma de manifesto, os quatro adolescentes explicaram a disciplina interna da ocupação (com revezamento para as funções básicas de manutenção humana e material do movimento), a independência em relação à greve dos professores (segundo eles, a ocupação seguiria se a greve acabasse hoje), a necessidade de estabelecer regras rígidas para o acesso à escola (evitando, assim, que a ocupação perca seu foco), a não-vinculação partidária (embora não tenham usado exatamente essa expressão, fica claro que a democracia direta os entusiasma mais do que o sistema de representação) e o cuidado no trato com a imprensa – “para evitar distorções, é melhor que a gente fale coletivamente, e não cada um dizendo uma coisa”, diz Kymberlli. Em dado momento, um dos repórteres sugere que a restrição à imprensa é um procedimento comum em regimes autoritários; eles replicam, defendendo a necessidade de evitar a manipulação dos fatos por empresas de comunicação preocupadas em vender notícias. Lutam por uma educação de qualidade, tanto em termos de estrutura física quanto de abrangência de conteúdos. Não por acaso, as questões de gênero são recorrentes tanto nas falas quanto nos rabiscos das paredes.
Antes de nos guiarem por algumas salas, para demonstrar o estado de sucateamento da escola, fazem questão de reforçar que as ocupações se apoiam mutuamente (até a tarde de quarta-feira, já eram seis as escolas ocupadas na cidade). “Como a gente começou primeiro, podemos ajudar a se organizarem, e também repassar alguns materiais de limpeza e alimentos”, explica Bruno. Aproveitam também para solicitar o apoio da comunidade, através de doações para a ocupação.
Saímos do Cilon Rosa com uma sensação compartilhada – ao menos entre os três que íamos juntos pela Presidente Vargas rumo ao centro: esses guris e gurias estão tomando para si o direito e a responsabilidade de se tornarem cidadãos autônomos, não mais submetidos ao silêncio em períodos de crise educacional. E também reinventando as ferramentas de mobilização social, relativamente livres dos vícios hierárquicos acumulados por movimentos sociais ao longo das lutas.
Ainda que seja cedo, muito cedo para comemorar alguma coisa, uma brisa de otimismo sopra na fala desses meninos e meninas. Talvez seja a anunciação de um futuro menos nebuloso para a educação – e para o Brasil como um todo.
Segundo o CPERS são mais de 140 escolas ocupadas no RS. Olhando uma já é possível fazer radiografia do movimento?
Sartre e Simone eram existencialistas, marxistas (andaram se estranhando com a esquerda uma época). Bakunin era anarquista.
Literatura popular nas décadas de 60 e 70.
Acreditar que um movimento claramente de esquerda aconteceu por “geração expontânea” é, no mínimo, ingenuidade. Vide 2013, surgimento do Movimento Passe Livre, também “apartidário”. Tática antiquíssima da extrema esquerda de associar-se anonimamente a causas justas. Escondem o real objetivo, recrutam militantes, angariam simpatias. Criticam a mídia tradicional, enaltecem a mídia “alternativa”.
E os “papéis de gênero”? Nas reuniões que ninguém mostra pode-se ouvir a frase dita abertamente: “sem socialismo não há feminismo”.