JULGAMENTO. Até quando os 242 jovens mortos na Kiss ficarão insepultos?, é a questão de Carlos Wagner
Por CARLOS WAGNER, em seu site na internet, com foto de Divulgação/Polícia Civil (*)
A maneira como é estruturada a Justiça no Brasil é cruel com os pais das vítimas. Nas mãos de um bom advogado, o suspeito pelo crime consegue empurrar para frente o caso por uns bons anos. Essa realidade foi lembrada aos pais das vítimas da Boate Kiss na tarde de sexta-feira, no Tribunal de Justiça (TJ) gaúcho. Os desembargadores decidiram que o caso não irá a júri popular. Mas será julgado por um juiz criminal de Santa Maria, cidade onde aconteceu a tragédia na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Houve um incêndio na Kiss, onde morreram 242 pessoas, a maioria jovens universitários, e 636 ficaram feridos. Foram apontados como culpados pelo incêndio os proprietários da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann. E integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o assistente de palco Luciano Bonilha Leão e o vocalista, Marcelo de Jesus dos Santos. A decisão dos desembargadores livra os réus da acusação de dolo eventual – quando se assume o risco – para homicídio culposo e incêndio, o que resultará em penas menores.
Da decisão dos desembargadores, cabe recurso, e o Ministério Público irá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão do TJ tem que ser acatada e respeitada, ponto. Ela consagrou a estratégia dos advogados dos réus, que é empurrar para frente os processos, um direito assegurado pela Constituição. Para nós, repórteres, a decisão do TJ instalou no nosso meio uma inquietante pergunta: estamos dando a devida atenção que o caso Kiss merece? Para responder a essa pergunta, nós temos que correr os olhos pelos noticiários sobre o caso nos últimos cinco anos. Nesse tempo, a única vez em que o caso foi para as manchetes foi quando o Ministério Público de Santa Maria entrou com uma causa – calúnia e difamação – contra pais de vítimas – existe um farto volume de reportagens na internet sobre o episódio. Fora isso, o cotidiano da luta dos familiares das vitimas da Kiss por justiça não mereceu a atenção dos noticiários. E por que não mereceu a atenção dos noticiários?
A resposta para essa pergunta é simples, e qualquer estudante de primeiro semestre da faculdade de jornalismo sabe a resposta: não teve novidade. Aqui quero refletir com os meus colegas repórteres rodados e com os novatos na profissão. Será que a falta de novidades no caso não é grande notícia? Vejamos: em todos os cantos do mundo, o incêndio da Kiss é perfilado ao lado das maiores tragédias – é buscar na internet. Isso significa que cada coisa que acontece no caso é leitura obrigatória de jornalistas, pesquisadores e autoridades ao redor do mundo. Nós estamos tratando o caso Kiss como se fosse uma briga de bar que resultou em um homicídio. E não como uma tragédia que poderia ser evitada, caso as leis que regulamentam o funcionamento das boates tivessem sido obedecidas, como ficou claro no inquérito policial.
Se repórteres não voltarem a dar a grandiosidade que é esse caso, nós corremos o risco de ter o dedo dos nossos colegas ao redor do mundo apontado para a nossa cara, chamando-nos de omissos. Ninguém esquece o que aconteceu naquela noite do incêndio. Eu estava em férias e, no dia seguinte à tragédia, fui chamado para integrar a equipe que estava trabalhando no caso. Logo que cheguei à cidade, ainda havia fumaça nos escombros da Kiss. O cheiro de carne queimada podia se sentido. Fiquei uns 45 dias na cidade. O trabalho de apuração foi duro. Primeiro, entender como funcionava a burocracia da Prefeitura Municipal e quais eram as ligações existentes entre os donos da boate e as autoridades. Depois, como era que o Corpo de Bombeiros se encaixava nessa história. Ouvir o relato dos pais das vítimas marcou a todos os jornalistas que trabalharam no caso. No meu caso, um relato feito por um peão, pai de uma das vítimas, me marcou. No meio de uma conversa informal, ele me disse a respeito do seu filho, que era o primeiro da família a conseguir chegar à universidade.
– O nosso doutorzinho se foi.
Na ocasião, eu não escrevi nada sobre a conversa com esse pai, porque o caso já tinha acontecido havia duas semanas, e o foco no trabalho de apuração era conseguir descobrir fatos que mostrassem a responsabilidade das autoridades, dos proprietários da boate e dos integrantes da banda com o incêndio. A conversa ficou gravada na minha mente, e creio que jamais irei esquecer. Como as fotos feitas pelos peritos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) dos corpos das vítimas nos escombros da Kiss. O prefeito da época, Cezar Schirmer (PMDB), é o atual secretário da Segurança do Estado. Os quatro acusados de serem os responsáveis pelo incêndio estão em liberdade e tocando os seus negócios. E o tempo está se encarregando de empurrar o caso para o esquecimento. Inclusive falam que a cidade precisa esquecer o que aconteceu e tocar a vida em frente. Esse tipo de pensamento é uma maneira de maquiar a realidade. O fato é que, seja lá qual for a decisão da Justiça sobre os quatro acusados, enquanto ela não acontecer, perante os olhos do mundo, os 242 mortos no incêndio estarão insepultos. O repórter não pode deixar que isso seja esquecido.
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(*) CARLOS WAGNER é repórter, graduado em Jornalismo pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, entre os quais “País Bandido”. E, claro, cobriu a tragédia de 27 de janeiro de 2013, pelo jornal Zero Hora.
Um texto a ser emoldurado e distribuído a todas as faculdades de jornalismo, às redações de jornais, rádios e tvs e, sobretudo, analisado e refletido. Muito mais do que uma boa abordagem, uma aula.