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Da Boca do Monte – por Orlando Fonseca

Em seu último romance, o escritor paranaense Miguel Sanches Neto registrou uma digressão do narrador que é quase um verso: “A alma de uma paisagem são as pessoas amadas.” Retomo neste espaço a sentença, porque considero significativo para nós, em Santa Maria, no momento em que se discutem mudanças no Plano Diretor. A Câmara de Vereadores, através de uma Comissão Especial, vem promovendo uma série de audiências públicas para analisar as mudanças propostas pelo Executivo Municipal.

Só para lembrar, este documento é o que regula obras e edificações na cidade, a ocupação do solo no perímetro urbano. Qualquer mexida nas regras produz reflexos profundos na vida de todo cidadão, não apenas porque delimita seus passos pelas ruas, mas, principalmente, porque orienta o seu olhar para a paisagem urbana, esta que comporta uma alma feita de todas as pessoas que amamos.

Uma cidade não se significa apenas pelo concreto de seus prédios ou pelo traçado de suas ruas. Ela é a soma de aspirações individuais, de relações interpessoais que se processam por laços de sangue ou de afeto. A alvenaria de uma cidade é o amálgama resultante da fraternidade e da solidariedade.

No hino-informal de Santa Maria, o compositor Beto Pires lista uma série de motivos que o fizeram amar o lugar em que vive, indicando-nos pelo que e como Santa Maria deve estar em nossos corações. Em um trecho, talvez sem pensar em audiências públicas, em mensagens do Senhor Prefeito e decisões da Câmara de Vereadores, ele sugere, poeticamente: “Santa maria me guarde estes montes/ Que em suas fontes há som de oração”.

Mudanças no Plano Diretor podem permitir que a exploração imobiliária provoque aos nossos olhos e, por conseguinte, a memória a perda de referências do patrimônio histórico. Muitas edificações antigas, que contavam a história de gente que construiu nossa cidade, já vieram abaixo para dar lugar a novíssimos prédios, cada vez mais altos. Se não temos para onde apontar a grandeza de nosso passado, ficamos com carências de emblemas que reforcem a importância de nossa cidade.

Para dar um exemplo: o poeta Felipe D’Oliveira – que dá nome a um concurso literário da cidade – é um dos nomes que figura na galeria nacional dos Simbolistas. Afora um busto na Praça central, feito por um dos artistas mais importantes do modernismo brasileiro, Victor Brecheret, onde está o lugar em que nasceu para que um possível guia turístico aponte e diga aos visitantes “aqui nasceu o poeta”?

Por outro lado, a perda de referência da paisagem urbana também contribui para uma baixa autoestima cidadã. Os morros são um símbolo importante para Santa Maria. Localizada ao pé dos contrafortes ao sul da Serra Geral, nossa cidade já nasceu com esta definição em seu nome: Santa Maria da Boca do Monte. Permitindo que se aumente o gabarito dos prédios nesta zona da cidade, ultrapassando o limite de altura ideal, os morros vão desparecer da vista de quem vive aqui, e se sente, como o cantor, seguro e abraçado por eles.

Não desconsidero, com essa abordagem, que a construção civil faz parte do motor econômico local, gerando emprego e renda. Mas a economia não pode se esgotar nisto: a entrega para o esquecimento sítios históricos e simbólicos da cidade. Elevar a autoestima cidadã é também fator de desenvolvimento.

No dia 19 de abril, às 19h, na Câmara de Vereadores, acontece uma audiência pública para debater os projetos. Quem, como o Beto Pires, entende que os montes que cercam nossa cidade devem ser preservados aos nossos olhos, pois fazem parte de uma paisagem feita de nossos afetos, deve se fazer presente para indicar isso aos nossos edis e governantes.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a foto que ilustra esta crônica é de Gabriel Haesbaert, feita em 2016

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