Feminicídio: o anômalo argumento de legítima defesa da honra – por Michael Almeida Di Giacomo
A série de televisão, o argumento odioso e a decisão (correta) do Supremo
Há alguns meses assisti à série brasileira “Coisa Mais Linda”, disponível no serviço de streaming Netflix. O título da série é uma homenagem à música Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
No decorrer dos episódios constatei ser uma das mais interessantes produções a relatar, de forma quase lírica, os movimentos de emancipação e a luta por direitos das mulheres.
A personagem principal, Maria Luiza, interpretada por Maria Carolina Casadevall, após sofrer um golpe financeiro, por parte de seu marido, muda da cidade de São Paulo para a capital do Rio de Janeiro. É nesse ambiente que, ao lado de outras personagens femininas, decide abrir um clube de música e a narrativa se desenvolve.
Sem a intenção de trazer mais “spoilers”, aos que ainda não tiveram a oportunidade de assistir, de forma sucinta, faço referência a uma outra personagem: Lígia Soares, interpretada pela atriz Fernanda Vasconcellos, que no decorrer da história cruza seu caminho com o de Maria Luiza.
Lígia, que guarda o sonho de ser cantora, é casada com Augusto Soares, um personagem machista e conservador, oriundo de uma família que transita em meio à alta sociedade carioca.
A personagem, que no Clube de Maria Luiza passa ao conviver com o ambiente da Bossa Nova, vê despertar a força de seu sonho de cantar em meio ao público, ser uma profissional da música. No entanto, sofre imensa oposição e até violência física de seu marido, o que leva, por parte dela, ao rompimento da relação matrimonial.
Inconformado, Augusto não aceita o divórcio e, de posse de um revolver, acaba por matar Lígia. O desenrolar da história, realidade de muitas mulheres ainda no presente século, é ainda mais impactante.
Após passar um tempo foragido, Augusto retorna ao Rio de Janeiro e, de forma voluntária, se apresenta a fim de ser julgado pelo crime. Em sua tese pelo ato cometido aduz como argumento principal a legítima defesa de sua honra.
O resultado final é que o réu foi condenado pelo crime de homicídio praticado por relevante valor moral e social. E foi sentenciado a uma pena de quatro anos, cumprida em regime aberto. Com isso, retornou a conviver normalmente no ciclo social carioca.
Parece ser surreal essa discussão em pleno século XXI. Mas, infelizmente, o argumento é usado de forma corriqueira ainda nos dias atuais.
Para se ter uma ideia, em 29 de setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal manteve a absolvição de um réu confesso que havia matado a esposa a golpes de faca, pois “imaginava” ter sido traído pela vítima.
A Corte não discutiu o fato da absolvição ter tido por fundamento a defesa da honra do feminicida, mas sim a soberania dos veredictos em tribunais do júri.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia reformado a decisão e determinado a realização de um novo júri. Já a Defensoria Pública sustentou a impossibilidade do recurso, uma vez que confrontava decisão fundada em quesito absolutório genérico.
Ou seja, uma vez sendo impossível saber exatamente qual foi o motivo acatado para a absolvição, devido a votação dos jurados ser sigilosa, restou inviabilizado um possível recurso da parte acusatória.
Voto divergente na decisão, o ministro Alexandre de Moraes, argumentou que o quesito genérico tem a finalidade de simplificar a votação dos jurados e não para transformar o corpo de jurados “em um poder incontrastável, ilimitado”.
O ministro Roberto Barroso, que também divergiu da maioria, asseverou que deveria haver uma prevenção geral, a fim de que o crime de feminicídio não fosse naturalizado.
A lembrança dessa passagem da série e o julgado mencionado me veio à mente quando na última semana o Brasil acompanhou a decisão, em liminar, do Supremo Tribunal Federal de declarar ser inconstitucional que advogados usem a legítima defesa da honra como argumento de seus clientes feminicidas.
A ação analisada foi proposta pelo Partido Democrático Trabalhista, na qual requereu que a referida tese fosse afastada, uma vez que os Tribunais de Justiça têm entendimento divergentes sobre os vereditos que absolvem réus pela prática de feminicídio com base na defesa de suas honras.
O Ministro relator, Dias Toffoli, asseverou que o argumento, ainda utilizado, é um recurso “odioso, desumano e cruel”. Entendeu o magistrado que não se pode “imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões”.
Como se nota, em casos de feminicídios, a tese é eivada de uma verdadeira anomalia argumentativa, até então protegida pela plenitude de defesa. Isso, pois a Constituição Federal de 1988 aduz como fundamentos do Estado brasileiro a dignidade da pessoa humana, a não discriminação e o direito à vida de todos e todas.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal é a ruptura de uma cultura patriarcal, oriunda do período primitivo da humanidade, quando iniciaram os matrimônios por rapto ou por compra da mulher.
Ao entender ser a mulher sua “propriedade”, passou a ser uma “prerrogativa” do homem decidir sobre seu direito a viver ou não. Uma atitude animalesca.
Na semana em que comemoramos o Dia Internacional das Mulheres, a decisão do Supremo Tribunal Federal é um alento aos que lutam por dignidade e por uma sociedade de iguais, onde a vida humana deve ser respeitada e protegida, a romper com anomalias jurídicas.
(*) Michael Almeida Di Giacomo é advogado, especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público. O autor também está no twitter: @giacomo15.
Observação do Editor: a foto que ilustra este artigo é de Divulgação/STF.
Esquerda, mas não só ela, despreza a ‘ciência’ que da boca para fora tanto defende. Há um aspecto patológico (da natureza) e não somente cultural no problema (que alguns defendem com o discurso como única evidencia). Para uns o ser humano é uma massa de barro que pode ser moldada a vontade. Vide campos de ‘reeducação’ chineses. Como diria Rousseau ‘L’homme est né libre, et partout il est dans les fers’.
Resumo da opera, se entendi direito, para não mitigar a soberania do júri resolveram reduzir o campo argumentativo dos advogados via inconstitucionalidade. Num pais onde juiz de primeiro grau substituto declara lei inconstitucional em sede de liminar. O que pode dar errado?