Ainda Estou Aqui, esperando o quê? – por Amarildo Luiz Trevisan
A proposta (do filme) “vai além da simples denúncia dos horrores do passado”
Walter Salles, mais uma vez, nos conduz por um caminho de resistência, memória e identidade em seu mais recente filme Ainda Estou Aqui (2024). A adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva não se limita a relatar os horrores da ditadura militar brasileira, mas propõe um olhar distinto, mais íntimo e filosófico, sobre o que significa perseverar em meio à adversidade. No centro dessa história, Eunice emerge não apenas como uma vítima do regime militar, mas como uma figura estoica, cuja resiliência transcende o trauma e aponta para uma reflexão sobre a democracia que construímos – ou ainda esperamos construir.
O filme não se limita à denúncia histórica, pois este é um caminho já percorrido por inúmeros documentários e filmes que expõem as feridas abertas do período militar. A proposta aqui vai além da simples denúncia dos horrores do passado: trata-se de uma reflexão profunda sobre a história recente do Brasil, uma busca pelo entendimento de como enfrentamos as adversidades e reconstruímos a democracia.
Em vez de apenas revisitar o sofrimento, o filme oferece uma leitura filosófica que destaca a resiliência e a capacidade de transformação diante da perda e da injustiça. Eunice não se prende à tragédia que marcou sua vida. Seu marido, Rubens Paiva (1929-1971), eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), foi capturado e nunca mais devolvido.
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O deputado Rubens Paiva (foto ao lado) foi capturado pela ditadura e nunca mais voltou.
A aparente harmonia familiar foi destroçada pelo autoritarismo, mas Eunice não ficou paralisada diante da dor. Ela se desloca, se reinventa e se fortalece. Em São Paulo, ingressa na faculdade de Direito e dedica sua vida à defesa dos direitos indígenas, ao mesmo tempo em que se empenha na recuperação da memória de seu esposo, vítima do desaparecimento forçado sob o regime ditatorial. Seu sorriso não é uma máscara para esconder a dor, mas um testemunho de sua escolha consciente de seguir em frente.
O estoicismo de Eunice remete a Epicteto, que ensinava que devemos distinguir aquilo que podemos e aquilo que não podemos controlar. A protagonista compreende essa lição e, em vez de se agarrar ao passado, busca formas de atuar sobre o presente. Seu enfrentamento à ditadura não se dá pela via do conflito direto, mas pela obstinação em construir algo maior. Eunice não permite que a tragédia a defina. Sua luta é travada no campo da legalidade, da resistência pela educação, pelo direito, pela palavra.
Mas o que Ainda Estou Aqui nos faz perguntar é: esperamos o quê? A democracia, construída com tanto esforço, ainda parece frágil, sujeita a fantasmas que nunca foram exorcizados. Quando acreditávamos que o militarismo e a força bruta haviam sido sepultados, eles ressurgem com novo vigor. A história, em seu eterno retorno, nos desafia a pensar se aprendemos algo com o passado ou se continuamos à espera de um desenlace improvável – como os personagens de Samuel Beckett esperando por Godot.
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Cena (foto ao lado) do filme Ainda Estou Aqui, em que Eunice, interpretada por Fernanda Torres, encoraja sua família a sorrir para a foto, mesmo carregando a dor da perda.
O sorriso de Eunice, no entanto, nos oferece um contraponto à inércia. Ele é a prova de que a verdadeira resistência não é se prender ao passado, mas atuar no presente com coragem, temperança e sabedoria. O filme, indicado a prêmios em festivais internacionais, não é apenas uma homenagem a uma mulher que enfrentou o império da ditadura, mas um convite para que cada espectador reflita sobre sua própria postura diante das injustiças do mundo. Afinal, ainda estamos aqui – esperando o quê?
(*) Amarildo Luiz Trevisan é professor do curso de Ciências da Religião e do PPGE/UFSM.
Observação do Editor: as fotos que ilustram este artigo são de Reprodução (Rubens Paiva) e Divulgação (cena do filme)
excelente ponto de reflexão entre tantos a serem feitos pelo filme: ainda estou aqui.
quando o trauma indicava a paralisação e ciclo de violência, houve a construção de possibilidades e reparação.