A chama que não se vê – por Amarildo Luiz Trevisan
O Espírito Santo “não se manifesta como espetáculo, mas como entrelinha”

Num domingo de outono, enquanto o mundo seguia seu roteiro de sempre – as compras do mercado, o futebol na TV, o churrasco com os amigos -, lá dentro da igreja se celebrava um fogo que ninguém via. Pentecostes. A festa da vinda do Espírito Santo. Uma chama pousada, mas que não queima; uma presença, mas sem corpo.
Há datas no calendário litúrgico que pedem silêncio mais do que palavras. Pentecostes é uma delas. Celebramos a vinda do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus, um acontecimento fundante da Igreja para a fé cristã. Mas o que significa, hoje, essa chama que não se vê? O que fazer com um Espírito que sopra onde quer, mas que não se deixa capturar pelas fórmulas da religião, nem pelos algoritmos das redes?
Vivemos tempos em que os sinais se multiplicam, mas o sentido escapa. Tudo é imagem, ruído, estímulo. As telas nos mantêm ocupados, informados, conectados – mas desconectados de nós mesmos e do outro. A presença do Espírito, que exige escuta, silêncio e interpretação, torna-se cada vez mais difícil de ser percebida. Não por ausência dele, mas por nossa incapacidade de leitura.
E é aí que a hermenêutica se faz urgente.
É curioso: Cristo teve um corpo, uma voz, um gesto. O Espírito, ao contrário, é sopro, brisa, labareda. Invisível. Sua linguagem não está nas regras gramaticais nem nas normas da lógica. Ela se dá onde há escuta. Não qualquer escuta — mas aquela que capta o que está além das palavras: o suspiro do mundo, o silêncio dos injustiçados, o grito contido dos que já não esperam.
Talvez, por isso, seja tão difícil perceber o Espírito hoje. Porque perdemos a arte da escuta. Reificamos tudo: os objetos, as pessoas, até a fé. Transformamos cultura em distração, educação em treinamento, espiritualidade em autoajuda. O entretenimento nos ensurdeceu.
O Espírito Santo não é uma evidência. Ele é um convite. Não se manifesta como espetáculo, mas como entrelinha. É preciso lê-lo – ou melhor, interpretá-lo. Como ensinaram os mestres da hermenêutica, interpretar é muito mais do que decifrar códigos. É deixar-se tocar por algo que nos interpela, que nos desinstala, que nos convoca a uma nova compreensão do mundo e de nós mesmos.
Mas quem, hoje, consegue ouvir? Quem ainda sabe interpretar? Estamos entorpecidos pelo excesso de imagens, pela avalanche de conteúdos, pelo vício da velocidade. Nossos olhos saltam de vídeo em vídeo, de tela em tela, mas nossos sentidos mais profundos estão adormecidos. Já não lemos o mundo – apenas o consumimos.
Neste cenário, a fé corre o risco de se transformar em consumo religioso. E o Espírito, que é movimento, liberdade e sopro, é transformado em produto de promessa rápida: curas instantâneas, bênçãos on demand, respostas fáceis para problemas complexos.
Pentecostes nos desafia a reaprender a ouvir. A traduzir, com coragem, os sinais dos tempos. Não com fórmulas prontas, mas com sensibilidade. Não com dogmas engessados, mas com cultura viva, com educação que forma e transforma.
Celebrar Pentecostes, portanto, é um ato contra a corrente. É afirmar que ainda vale a pena escutar. É reconhecer que a presença do Espírito não se prova – se interpreta. E que interpretar exige tempo, cultura, educação, formação sensível. Exige reaprender a olhar o mundo não como espetáculo, mas como texto sagrado a ser lido com atenção amorosa.
Talvez o Espírito ainda fale muitas línguas. Mas quem está disposto a aprender a escutá-las?
A chama de Pentecostes não queimou os discípulos, mas os transformou. Não os fez espectadores, mas testemunhas. Talvez, se ainda quisermos ser tocados por esse fogo, precisemos recuperar essa arte antiga, quase esquecida, de escutar o silêncio, decifrar o invisível, e deixar que algo nos diga: levanta-te e caminha.
Quem sabe, então, possamos voltar a falar em línguas – não para impressionar o outro, mas para tocá-lo na sua humanidade mais profunda.
Enquanto escrevo, uma brisa entra pela janela. Trago café à boca, e por um instante, sem motivo, sou tomado por um arrepio. Será o Espírito?
Ou apenas o mundo me chamando a voltar a ser humano?
(*) Amarildo Luiz Trevisan é Licenciado em Filosofia no Seminário Maior de Viamão, tem o curso de Teologia, é Mestre em Filosofia pela UFSM, Doutor em Educação pela UFRGS e Pós-doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III de Madri. Desde 1998 é docente da UFSM. É professor de Ciências da Religião e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSM).
Comunas e a bobajada de ‘humanismo’, ‘humano’. Somente os completamente imbecis não sabem que é só discurso politico. Para quem acreditar nestas lorotas estou vendendo um viaduto na 158. Bonito, tem uma curva no meio e uma baita vista.