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O inferno não são os outros – por Liliana de Oliveira

Estou lendo o livro A desumanização do escritor português Valter Hugo Mãe. A desumanização é um romance passado na Islândia na qual uma menina de 11 anos precisa lidar com o luto pela morte da irmã. O livro foi um presente de aniversário que ganhei de amigos queridos e desde o ano passado estava em minha cabeceira esperando o momento certo para ser lido. Por acaso, começo a ler. Respeito os acasos, são sempre originais. Nas primeiras páginas de leitura me deparo com a seguinte passagem:

“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.”

Ao ler essa passagem imediatamente lembro-me de Jean Paul Sartre, importante filósofo existencialista, que numa de suas peças de teatro intitulada Entre quatro paredes diz que “o inferno são os outros.” Uma leitura rápida poderia nos levar a pensar que a passagem do livro diz exatamente o contrário do que diz Sartre. Entretanto, analisando um pouco melhor veremos que não.

Para Sartre a marca constitutiva do humano é a liberdade. Por isso, jamais seremos dominados por outro plenamente, porque jamais alguém conseguirá penetrar em nossa consciência: sempre haverá um espaço de liberdade, de resistência. Nunca seremos reduzidos à condição de objetos, pois sempre haverá ali um sujeito que terá uma consciência que se opõe à consciência do outro. Há sempre o conflito entre a nossa liberdade e a liberdade do outro e é nessa relação de conflito e oposição que nos constituímos e nos afirmamos. Nos constituímos a partir do olhar alheio. O olhar alheio confirma aquilo que somos. Isso implica em admitir que a partir da relação intersubjetiva autêntica que ocorre quando tomamos o outro como fim em si mesmo e não como objeto, que podemos dar sentido a nossa existência e à existência do outro.  Somente por meio da relação com o outro é que nos humanizamos, nos transformamos, nos constituímos como sujeitos éticos.

Jean Paul Sartre dizendo que “o inferno são os outros” e Vitor Hugo Mãe dizendo que “o inferno não são os outros” parecem estar dizendo o mesmo, ainda que pareça uma contradição.  Ambos parecem reconhecer que nossa humanidade se dá somente por meio da relação com o outro. Esse outro que nos olha, que nos indaga, que nos afronta, que exige que afirmemos aquilo que somos. Sartre e Vitor Hugo Mãe parecem reconhecer que o paraíso são os outros, porque sozinhos pensaríamos tão sem razão quanto pensam os peixes e pereceríamos como uma coisa qualquer. Com os outros, nos humanizamos e perecemos como humanos que somos cheios de angústias e questões existenciais.

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