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Hora de voltar – por Bianca Zasso

biancaEsta humilde cinéfila que vos escreve tem um defeito. Na verdade, tem vários, mas hoje ela vai se ater a apenas um, que é o fato de não conseguir ser servida. Explico: durante minha infância aprendi que quando se quer algo, é preciso dar um jeito. Meu café? Eu faço. Terminou a janta? Cada um que junte seu prato. O quarto está bagunçado? Pare de observar e dê um jeito. Com essa criação, acabei tendo um certo problema quando alguém quer me dar as coisas prontas.

Quando me deparei com a primeira situação em que vi alguém fazendo de conta que a pessoa que trabalha na casa deles não existe e que é só chamar que ela aparece e obedece, tomei o maior dos sustos. Achava que gente malvada assim só existia na história da Cinderela. Mesmo surpresa, continuei a ser a Bia de sempre, que dá bom-dia porque gosta e não se importa se quem o recebe é alto empresário ou jardineiro.

Aliás, o jardineiro é quem mais merece o meu cumprimento. Isso porque, não entendo alguém que quer um jardim impecável e não se aventura a mexer nele. Feliz é quem cuida das plantas ao invés de apenas ostentá-las para os vizinhos. Toda essa conversa foi para dizer que um dos filmes mais comentados dos últimos tempos foi feito para a geração que pensa desse modo. E é preciso agradecer a sua existência.

Que horas ela volta? causou rebuliço em todos os locais em que foi exibido. Entenda-se por rebuliço um prêmio exclusivo para as atrizes principais no Festival de Sundance, uma possível indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro (que não se concretizou, infelizmente) e discussões entre o público e também a crítica, além de uma estreia em TV aberta que aconteceu na última segunda-feira, dia 11, na Rede Globo.

Até os patrões entraram na jogada, afirmando que a imagem representada no filme não condiz com a realidade. Disseram isso do alto de suas coberturas, enquanto saboreavam um uísque doze anos. É uma triste notícia, mas ainda há quem ache que é preciso que exista alguém que prepare o café e que a mesa seja retirada logo após a última garfada. Ah, se eles soubessem que preparar a própria comida é mais barato e mais eficiente que pagar um analista. Talvez por isso no que eles chamam de senzala haja mais sorrisos que em seus Petit-comité chatérrimos.

Que horas ela volta? é um filme-resposta de Anna Muylaert, que dirige seu olhar com ternura por personagens bem moldadas. Regina Casé, ainda com dificuldade para deixar de lado a atuação histriônica, dá vida a Val, que trabalha em uma mansão no Morumbi onde é mais mãe do morador adolescente, Fabinho, que os próprios pais.

A filha de sangue ficou na terra natal e deixou um aperto no peito. Mas o tempo passou e é chegada a hora do reencontro. Jéssica (uma atuação verdadeira e sem vícios da novata Camila Márdila) chega em São Paulo com seu sotaque delicioso e o sonho de prestar um dos vestibulares mais concorridos do país. Val e Jéssica fizeram o mesmo caminho do nordeste para a metrópole paulista, porém com olhares diferentes. A mãe acredita que seu lugar é na cozinha e que existem limites bem claros entre empregados e patrões. Mas a filha é de outra geração e não aceita sem questionamentos o calor e o aperto da dependência de empregada, um dos cômodos mais infames já inventados.

Jéssica se enxerga como cidadã e sabe que a batalha é longa e não precisa ser vivida de cabeça baixa. Sua naturalidade ao encarar a patroa da mãe no seu primeiro café da manhã na “casa da Dona Bárbara” é desconcertante para Val. Afinal, onde já se viu a patroa ter que preparar o próprio suco? Jéssica é quem vai jogar o copo na cara da madame: os tempos mudaram, dondoca.

A cada “ousadia” de Jéssica, Val descobre que não só não merece o tratamento que recebe como está muitos pontos na frente dos patrões. Há mais cumplicidade entre ela e a filha, que passaram mais de 10 anos separadas, do que entre a “Dona” Bárbara e seu filho, Fabinho, que prefere o cafuné de Val aos conselhos da mãe. Jéssica e sua espontaneidade conquistam Carlos, o frustrado patrão de Val, demonstrando que o relacionamento dos donos da casa é mais uma questão econômica que amorosa. Há algo de podre na mansão do Morumbi.

Que horas ela volta? é bem conduzido e sua questão humana é mais importante que tomadas insólitas ou movimentos de câmera extravagantes. Anna Muylaert, desde Durval Discos sabe que uma boa história consegue conquistar com imagens simples, mas de significado intenso. Com uma câmera parada, ela fez uma das cenas mais emocionantes do cinema atual, onde Val comemora a vitória da filha na piscina quase vazia dos patrões.

Sua felicidade está apenas começando e é chegada a hora de voltar. Para a filha, para as próprias escolhas e para uma nova realidade. Val e Jéssica procuram um novo lar. Sem quartinho nos fundos e de frente pra vida.

Que horas ela volta?

Direção: Anna Muylaert

Ano: 2015

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