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Mariana Alcoforado e as Cartas Portuguesas – por Elen Biguelini

Em 1669 surgia em francês um texto anônimo, supostamente de autoria de uma freira portuguesa, para seu amante francês, que teriam sido traduzidas. Ainda que supostamente anônimo, durante o século XIX o texto foi redescoberto, e publicado novamente como sendo de autoria de Mariana Alcoforado (1640-1723) para seu amante, o Marquês de Chamilly.

Se realmente foi a freira que escreveu as missivas (algo muito questionado por toda a crítica literária e que o pesquisador Fabio Mario da Silva conclui na negativa), não importa para a relevância do texto.

Foi considerado, durante muitos anos, um texto de autoria feminina e, o que o torna ainda mais escandaloso, de uma freira.

Mas por que escandaloso? Simplesmente por que fala de amor? Por que seria de autoria de uma freira? Para ambas estas perguntas: sim. É escandaloso por ser de autoria de uma freira apaixonada, que descreve fisicamente o seu amor.

A obra se divide em cinco cartas.

Na primeira, é descrita a saudade: “Ai de mim? Por que não queres ficar comigo a vida inteira?” e “ Por que é que puseste tanto empenho em me tornar infeliz? Por que não me deixaste em paz no meu convento?” (ALCOFORADO, 19). O sentimento dos dois era muito forte, mas ele se foi e ela foi deixada no convento, para sofrer as dores da separação.

Na segunda missiva, fala da forma extrema que ama, “não deixaria de ser bem infeliz se me amasses apenas porque eu te amo” (ALCOFORADO, 24) e “[e]ra-me demasiado agradável sentir que estava contigo para poder pensar que um dia te afastarias de mim”. (ALCOFORADO, 25).

Já na terceira carta, descreve um sentimento confuso e que não a deixa: “[e]u não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo: encontro-me dilacerada por mil movimentos contrários.” (ALCOFORADO, 35). O amor é muito poderoso, controla Mariana e a deixa à mercê de sua dor, cogitando o suicídio: “Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar muitas vezes em mim.” (ALCOFORADO, 38)

Na quarta carta, Mariana ouviu notícia de que seu amado retornara a Portugal, mas não a procurou. Ele se encontra desolada, “desgraçada” pela forma com que era ignorada pelo amado: “[q]uantas inquietações me terias poupado se se a tua maneira de proceder tivesse sido tão desleixada nos primeiros dias em que te vi, como me tem parecido que é de algum tempo a esta parte!” (ALCOFORADO, 44). Chamando ingrato aquele que ama, ela descreve a lembrança de outra dama que havia sido por ele amada, e afirma: “até seria capaz de me sujeitar a servira aquela que tu amas!” (ALCOFORADO, 54). Finaliza perguntando: “que fiz eu para ser tão desgraçada? Por que envenenaste a minha vida?” (ALCOFORADO, 56);

Finalmente, a carta final demonstra uma racionalização maior sobre o próprio coração: “Só conheci bem o excesso do meu amor quando quis fazer todos os esforços para me curar dele” (ALCOFORADO, 61). Mas a distância da figura amada e a forma como ele não respondeu sua quarta missiva, fizeram com que Mariana ponderasse sobre sua própria situação e na forma como acreditara piamente em um amor que talvez não fosse retribuído com a mesma força: “[f]ui eu a culpada de todas as minhas desgraças: primeiro habituei-o a uma grande paixão, onde havia demasiada simplicidade –(…). Desejava que eu o amasse; e, como concebera este desígnio, nada omitiu para o conseguir; ter-se-ia mesmo resolvida a amar-me, se tal fosse necessário. Mas viu que podia triunfar na sua empresa sem paixão” (ALCOFORADO, 69). Iludida, a pobre jovem freira apaixonada ao mesmo tempo pede pelo amor de Chamilly, e afirma que não irá mais pedir seu amor.

O sentimento e a paixão com que são escritas as missivas foram temática de diversas discussões. Poderia uma mulher escrever assim? Poderia verdadeiramente ter existido o sentimento físico que parece ser tão marcante na obra? Poderiam os amantes realmente ter tido uma relação tão próxima?

A História não conseguiu responder estas perguntas. Teriam sido mesmo autoria da freira portuguesa?

Não sabemos.

Mas podemos afirmar que esta obra é de extrema importância para a História da Autoria feminina em português, pois ainda que não tenha sido verdadeiramente escrita por mãos femininas, foi assim conhecida durante muitos anos.

Na próxima semana falaremos sobre a obra que, influenciada nesta, marcou o movimento feminista português, as “Novas Cartas Portuguesas” que, assim como na original de autoria dúbia, retrata não apenas o sentimento feminino, mas também a relação entre corpo e mente: a fisicalidade do sentimento amoroso que escandalizou os leitores tanto em 1700 quanto na década de 70.

ALCOFORADO, Mariana. Cartas Portuguesas. Porto Alegre: Editora L&M Pocke, 1997.

Fabio Mario da Silva. A autoria feminina na literatura portuguesa. Reflexões sobre as teorias do Cânone. Lisboa: Edições Colibri, 2014.

 (*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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