Contos

Um bandido de Passo Fundo – por Vitor Biasoli

Na tua idade, disse o homem na confeitaria, olhando para o menino sentado na sua frente, eu vivia com o meu pai em Passo Fundo. Ele fora mandado para gerenciar um banco naquela cidade e morávamos num hotel. Certa noite, acordamos com um tiroteio na rua e nós jogamos no chão. Era 1923 e eu tinha 10 anos de idade, igual a ti. Meu pai puxou o colchão da cama, com cobertas e tudo, e falou: “Fica aí, guri, eu já volto”. Ele saiu do quarto e voltou logo depois, dizendo que pegaríamos o trem para São Paulo, de manhã bem cedo. Ele trazia umas sacolas com dinheiro e documentos do banco e fazia aquilo porque sabia que os rebeldes iriam atacar a agência. Nós saímos do hotel ainda de madrugada e fomos para a estação ferroviária, carregando as sacolas. Um bando de homens mal encarados nos parou numa esquina, nos apontou as armas, até que veio o chefe, olhou bem para a cara do meu pai e falou: “Este pode passar”.

Ficamos sentados no banco da estação, e a mão do pai tremia quando levava o cigarro até a boca. Nunca tinha visto ele com medo. Não sabia que ele sentia medo também. Ele só se acalmou quando entramos no trem e então explicou que aquele homem que nos deixara passar era um bandido muito temido na cidade. Um dia, o pai o encontrara desesperado na farmácia, aflito porque não podia pagar os remédios para o filho, e o pai pagou. O homem não disse uma palavra, todo mundo se admirou com o que o pai fizera, e agora, naquela madrugada, o homem estava dizendo “obrigado”.

Meu pai não era um homem bom. Era um bancário educado, habituado a tratar clientes e funcionários, e pronto. Aquilo que fizera na farmácia fora um ato impulsivo, coisa rara em sua vida. As injustiças do mundo não o incomodavam. Tratou a vida inteira com gente do dinheiro e achava muito natural que uns tivessem quase tudo e outros, quase nada. Quando o doutor Getúlio morreu, ele estava entrevado na cama e ouvimos juntos as notícias no rádio. Ele lembrou o que acontecera em Passo Fundo e ficou muito emocionado. Foi a primeira e única vez que vi meu pai chorar.

O menino olhou para o homem na sua frente e não entendeu mais o que ele estava dizendo. Apenas pensou que, quando crescesse, não iria deixar passar nenhum bandido como aqueles dois fizeram e que iria, isto sim, matar todos esses filhos do Cão.

O AUTOR


Nasceu em Pelotas, em 1955. Professor de História, formado pela UFRGS (1977), Veio para Santa Maria em 1991 e lecionou na UFSM. Vitor Biasoli, atualmente, está aposentado. Prepara o lançamento de um livro de poemas, Paisagem Marinha, e finaliza um romance, Os caminhos de Santa Teresa.

Este conto foi publicado com autorização do autor. Crédito da imagem no topo da página: StarGladeVintage / Pixabay

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo