Banho de barro e a vida medíocre – por Carlos Dominguez
Era uma barranca de rio igual a qualquer outra no Rio Grande. Ainda soprava o frio de julho. Mas fazia um belo sol dos trópicos. Quente de meio dia. Agradável de fim de tarde. Estavam as crianças em mais ou menos dez. Era difícil de contar dada à movimentação alucinante que faziam na barranca do modesto rio que alia cruzava, tímido, fugindo de terras mais hostis que lhe envenenavam as veias.
– Vamos escorregar! – berrou o que ia mais adiante.
– Mas está seco – contrapôs uma menina de melenas escuras e lisas.
– Eu resolvo – berrou um mitaí de não mais de seis anos que imediatamente tirou toda a roupa velha e surrada e, agarrado nas cuecas minúsculas, ganhou o rio.
E lá foi ele nadando a braçadas firmes. Fez uma bacia improvisada que ia deixando pelo caminho metade da água para regar a decida em barranca onde imaginavam fazer a brincadeira. Por mais de cinco vezes ele foi e voltou sem nenhuma melhoria significativa na decida. Os meninos e meninas pelados até tentavam escorregar, mas os corpinhos não deslizavam. Inútil! Deslizar não é bem assim.
E lá ficou o bando. Água vem água vai. Bunda pelada no barro. Não desce. Molha mais. Não deu. Tenta de novo. Até que um caingangue adolescente pega um “saco de matéria” e vai ajudar a legião de pequenos pelados risonhos. Ele enche o saco de água e vai traçando um belo escorregador sinuoso pela barranca de barro. Molha e larga a água na terra vermelha. E a cada aumento da pista a legião de pelados grita em caigangue em completa euforia. Logo o tobobarro está formado. E lá vão os minúsculos. Um por um. Dois por dois. Três por três. Bando por bando. Escorregando pelados no barro até chegar ao rio. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Até o dia se acabar. Felicidade é um estado de espírito. Os pequeninos, após a farra, não terão uma cama para deitar. A comida será pouca – apenas um sopão de legumes e algumas carnes. Não vão vestir um pijama e ninguém vai rezar com eles ao pé da cama. Eles é que são felizes.
A cena aconteceu em um dos seis acampamentos de caingangues sem terra no norte do estado. Vivem em barracas de lona a beira do asfalto. Indigentes. Sem nada. Nada além de uma vida de necessidades. Um dos seus últimos pagés, Fernando, morreu há dois meses de pneumonia. Ele que alimentara a idéia de lutar por terra. Até então as poucas famílias andejavam as margens de rodovias de asfalto mortal. Sem absolutamente nada. Nem dignidade. Até que o velho pagé chamou a comunidade e buscou a batalha pela terra perdida. E o banho de rio e o escorregador de barro. A comida feita lentamente no fogo de chão. A pequena e mirrada horta contemplada com nojo pelo colono de origem européia.
– Estes bugres ganham tudo de graça e não fazem nada. Meus avós derrubaram todo este mato para plantar. E agora ninguém planta nada – conta Antônio De Nardi, colono que perdeu as terras para os caingangues na década de 90, na localidade de Engenho Velho, norte do Rio Grande do Sul.
Região que os caingagues dominaram por séculos até serem expulsos pela expansão Guarani. Para eles nunca houve Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Havia sim as terras dobradas as margens do Rio Uruguai. Ali sempre viveram – caçadores e coletores – e criaram uma cultura praticamente invisível. Sofrendo preconceito de todos. Hoje, embora sejam o maior grupo indígena no estado, nem a Funai nem o governo estadual sabe exatamente quantos são. E fora das tribos que conseguiram reaver as terras tomadas por colonos há 30 anos, seis agrupamentos nem isso conseguiram. Vivem na incongruência de serem índios e não terem terra. Realidades escondidas. Vidas à margem da sociedade. No Rio Grande do Sul, em setembro de 2009. E mesmo assim, seus filhos escorregam de bunda, pelados, numa barranca de rio. Nunca vi maior prova de felicidade.
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