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Haitianos, abandonados por deus? – por Luciano Ribas

Comecei a ler “Caim” do genial escritor português José Saramago, um livro que, imagina ele, será o segundo escrito para sofrer censura no seu próprio país. Influenciado pela obra, já nas primeiras páginas tomei a decisão de que nunca mais grafaria a palavra “deus” (bem como os termos que a ele se referirem, como “senhor”, por exemplo) com a inicial maiúscula, ao menos em escritos que expressarem minhas opiniões sobre a vida e o mundo. Assim, o título deste artigo pode até conter um erro por não seguir as convenções da escrita, mas já faz parte da minha pequena insurgência “saramaguiana” e, por isso, assim será lido pelos que tiverem paciência para tanto.

Penso escrever “certo” por uma grafia “torta” num intervalo do Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual, onde estou como convidado devido à minha participação na organização do Santa Maria Vídeo e Cinema. Nesses dias quentes do verão paulista, a cidade que possui um dos melhores climas do mundo (ao menos segundo o seu prefeito) recebe a diversidade de pessoas que integra as mais diferentes áreas do audiovisual autoral brasileiro e de alguns outros países. Como em todos os encontros, os níveis de interesse e comprometimento são também diversos – há os que se interessam muito pela piscina do hotel e pouco pela sala onde se realizam os debates, por exemplo – mas isso faz parte da falha natureza humana.

Entre compatriotas de todos os cantos, mexicanos, argentinos, uruguaios, bolivianos, venezuelanos, colombianos, catalães, portugueses, italianos e até mesmo um bengalês, tive a felicidade de conhecer o professor aposentado da USP Nelson Marques, hoje residindo no Rio Grande do Norte e militando no movimento cineclubista, além de escrever sobre ficção científica no cinema.

Na volta da sessão competitiva do festival, nos integramos a um pequeno grupo decidido a encerrar a noite tomando algumas cervejas e conversando um pouco mais sobre o cinema. Como não poderia deixar de ser, a tragédia do Haiti entrou na roda e o novo amigo Nelson disse a frase que eu vinha gestando como argumento para o presente texto, algo como “a sucessão de tragédias no Haiti provam que, de fato, deus não existe”.

A simplicidade da frase é diretamente proporcional à sua força. Afinal, o que explicaria, caso alguma divindade dotada de discernimento e bondade de fato existisse, a sucessão de tragédias sociais e de desastres naturais que em seqüência atingem o país mais pobre das Américas? Algum tipo de sadismo onipotente ou de intolerância religiosa contra o país do vodu? Ou seria imaginável, mesmo sob a ótica do Velho Testamento e do seu deus guerreiro e vingativo, que um ser plenipotenciário, venerado por bilhões de pessoas, poderia acordar azedo, calçar suas botas, vestir seu casaco, olhar para o arcanjo mais próximo e dizer “hoje o Haiti vai ver o que é bom pra tosse”?

Antes que alguém levante o descarado argumento dos “mistérios da fé e da vontade divina”, lembro que não há dogma, seja de que religião ele for, capaz de resistir às imagens de corpos enfileirados nas ruas de Porto Príncipe. Homens, mulheres, crianças, velhos nascidos no Haiti e também muita gente de outros lugares que exercia sua solidariedade militante (muitos em nome da fé, como Zilda Arns) auxiliando na reconstrução do país.

Religiões e divindades nascem e morrem pela vontade humana, ora recorrendo à inventividade, ora à força bruta. São criadas à nossa imagem e semelhança, portanto impregnadas com nossas qualidades e defeitos, a tendência a negar a racionalidade entre estes últimos. A “luta” é para que o que existe de “bom” prevaleça e que na corda esticada entre o animal e o super-homem nos afastemos daquilo que nos brutaliza, sendo solidários ao Haiti, por exemplo, mesmo que algum deus louco e racista lhe considere digno de punição.

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Um Comentário

  1. @JORGE VANDERLEY PEDROSO DA SILVA
    Jorge, pode ter a certeza de que li a Bíblia e alguns estudos sobre os livros, religiões e divindidades que deram origem ao que conhecemos por “deus”, inclusive um livro basilar chamado “deus, uma biografia” de Jack Miles (o qual recomendo para ti e quem mais desejar entender o processo social de criação de uma divindade). Ou seja, minha opção pelo ateísmo não é uma birra, nem reflete uma ideologia (de esquerda ou de direita), mas uma visão sobre o mundo fundada na Humanidade e na Razão(assim, com letras maiúsculas, mas sem cores divinas). De qualquer forma, respeito todas as fés e entendo a necessidade humana em “crer”, respeito este que a esmagadora maioria das religiões muitas vezes não retribuiu durante a história. Copérnico, as “bruxas de Salem”, os negros feitos escravos porque não teriam alma, os atentados de 11 de setembro de 2001 e uma série de outros fatos ao redor do mundo não me deixam mentir.

  2. Meu caro Luciano Ribas!!!!!
    Você deveria antes de tudo ler a Bíblia Sagrada e analisá-la. Verificando se o que foi escrito a mais de 4.000 anos não bati com que está acontecendo hj. Use sua inteligência. Hitler, Stalin e tantos outros se intitularam deuses e como acabaram. O Comunismo e solicialismo são dogmas que abandonam Deus e não acreditam. De Deus não se zomba. Respeito a todas as religiões, mas Vc e Eu temos o livre arbítrio. Queira ou não só entrará nos céus quem crer somente em Jesus Cristo. E o que aconteceu no Haiti não são simples frases que irão explicar o que aconteceu.

  3. Na mosca! Também sou avesso a tudo que é dito sobrenatural e admirador da única obra que li do grande Saramago, O Evangelho… Vou aproveitar a deixa e comprar o livro citado pelo Luciano.
    Ainda, pra quem não conhece, sugiro o sítio ‘O Caderno de Saramago’ em http://caderno.josesaramago.org/.

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