Crônicas

Morrer de Amor – por Alessandro Soares

Foi na longínqua década de 1980, quando eu ainda jogava bola descalço na rua com os meus amigos, que fui vizinho
de um casal muito interessante. Interessante não, curioso. Era um casal curioso. Peculiar, na verdade. Isso, peculiar é a palavra.

Moravam na casa em frente à que eu morava com meus pais. Ele se chamava Alceu, aposentado da Aeronáutica, e ela se chamava Luzia, dona de casa; ambos na faixa dos cinquenta anos de idade.

Tinham três filhos crescidos, duas meninas e um menino, que apareciam de vez em quando, geralmente nos feriados e nas datas comemorativas. Na maior parte do tempo (era o que eu podia observar da nossa varanda) faziam companhia um ao outro.

Diariamente, no meio da manhã, seu Alceu levava o curió para passear, enquanto dona Luzia começava a preparar o almoço. Na volta, além do passarinho na gaiola, ele, às vezes, trazia o pão para o lanche da tarde. Depois da sesta, o homem ia jogar dominó com os outros velhos na praça; já a mulher esperava o marido sair e, dependendo das condições climáticas, escolhia remexer os canteiros no fundo do quintal ou fazer tricô em frente à televisão. Fechavam as janelas bem cedo, fosse qual fosse a estação do ano, logo que o sol se punha. E mais não se sabia sobre os dois.

Ah, faltou contar que as partidas vespertinas de dominó na praça eram regadas a Velho Barreiro. Talvez por isso, eventualmente, seu Alceu custava a acertar a chave na fechadura da porta de entrada e precisava que dona Luzia o acudisse. Somente nessas ocasiões ela alterava um pouco a voz, ralhava com o esposo, mas logo corria a lhe fazer um café. Agora sim, era tudo o que se sabia sobre os dois.

A vizinhança não se surpreendeu quando ele caiu de cama por causa de uma cirrose. Os filhos começaram a aparecer com mais frequência, preocupados com a mãe, que não arredava pé do quarto onde o pai estava confinado. O pobre curió nunca mais foi levado a dar uma volta e o mato tomou conta dos canteiros no fundo do quintal. Dona Luzia, bastante abatida, cada vez mais fraca, apenas sussurrava para si, repetidamente: “Se levares o Alceu, me leva junto, Senhor”.

E o Senhor o levou mesmo, em menos de duas semanas. Nas conversas dos adultos, uns diziam que ela não duraria muito tempo, pois o amor havia se acabado nesta vida, mas precisava continuar em algum lugar; outros garantiam que a viúva resistiria, já que tinha boa saúde e encontraria nos netos a motivação para continuar vivendo.

Dona Luzia surpreendeu a todos cuidando pessoalmente do velório, do enterro e até da missa de sétimo dia. Dispensou a solidariedade dos parentes e conhecidos do bairro, pediu aos filhos que não se preocupassem tanto, voltou a fazer tricô e a cuidar das plantas. Não fosse pelo fato de conversar com o falecido em voz alta nas horas vagas, parecia mesmo que as coisas tinham voltado ao normal. Era começo de primavera, numa quinta-feira do mês de setembro, se não me falha a memória. Eu e os meus amigos do futebol ouvimos dizer que ela dormiu perto das 22 horas, como fazia sempre, e não acordou na manhã seguinte. O curió também não resistiu.

A crônica
Morrer de Amor, de Alessandro Soares, de Florianopólis/SC, conquistou a 1ª menção honrosa na categoria Crônicas no 36º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2013. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: lecreusois / Pixabay.

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