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A travessia – por Luiz Carlos Nascimento da Rosa

O grande pensador grego, Heráclito de Éfeso (séc. V a. C), ao defender que as coisas do mundo estavam em permanente estado de transformação afirmava: não é possível entrar duas vezes na mesma água do rio, nem tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; pela velocidade do movimento, tudo se dispersa e se recompõe novamente, tudo vem e vai.

Quando olhamos pelas frestas do tempo neste perene fluir da História, podemos vislumbrar que, entre o passado e o presente, são nossos passos e nossas escolhas na vida que definirão que caminho e que futuro construiremos para nossas diferentes formas de manifestação da nossa condição humana. Com Heráclito podemos afirmar que a condição humana é fluídica, mas são os caminhos que escolhemos nas infinitas encruzilhadas com que nos deparamos que definirão quem, provisoriamente, nos tornaremos.

Lembrei disso quando me detive a pensar no quando, como e por que aportei minha vida na instigante e maravilhosa “Santinha da Boca do Monte”. Primeiro, diria que, infindos desejos e sonhos mobilizavam minh’alma irrequieta e juvenil; segundo, o conhecimento que a Universidade Federal de Santa Maria poderia me propiciar seria a princípio, desculpem o trocadilho, o fim.

Três décadas até então é o tempo que respiro, desfruto, vivo e tenho reinventado meus desejos e sonhos entre estes estéticos e sedutores morros que circunscrevem a bela geografia de nossa Santa Maria. Fincar meus pés neste lado da velha “Garganta do Diabo” não foi produto do destino. Foi e está sendo um longo processo de buscas, inovações e superações.

Quando aqui cheguei não existia shopping center, não existia celular e internet se configurava como coisa de filme de ficção científica. Para nos comunicarmos com a família ou com a amadinha que ficara distante, ou recorríamos à velha e saudosa cartinha dos correios e telégrafos, ou tínhamos que encarar uma fila de espera para utilizar as cabines telefônicas da antiga e boa Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT).

No final da década de setenta e início dos anos oitenta, em Santa Maria, os jovens casais não tinham o costume ou hábito de “ficar”. Muitas vezes com a aquiescência do papai e da mamãe, outras vezes às escondidas, a rapaziada namorava.

Namorava-se na Praça Saldanha Marinho, “Saturnino de Brito”, na “Primeira Quadra da Bozzano” e, acreditem se quiserem, nos cinemas “Imperial” (pejorativamente chamado de “o pulguinha”), no “Independência”, no “ Glória” e, por último, no também saudoso “ Glorinha”. Tempos em que quarta feira, para os casais de enamorados, era dia do “sofá” e beijo na boca constituía-se sinal de compromisso e aprofundamento de romance.

Hoje, não existe mais nenhum cinema de calçada em nossa “Santinha da Boca do Monte”. Namoro é coisa de “dinossauro” e a garotada está mais preocupada em contar o número de bocas que beija do que saber o nome de quem vai ser beijado. Isto é, a “parada” hoje é ficar. Sem falar que a gurizada se comunica, acreditem se quiserem novamente, em três segundos através do celular e arrumam namoro e namoram através do meio virtual, isto é, pela internet.

Santa Maria possui hoje vários shoppings center, sendo que as modernas “Casas de Cinemas”, juntamente com as moderníssimas “praças de alimentações”, ficam neles localizados.

Depois do cinema, nos idos de oitenta, fazíamos lanche na confeitaria “Copa Cabana”, na padaria “Chave de Ouro”, no “Gato Preto” e “café Cristal”. Eram escassas as nossas possibilidades e infindos nossos projetos e sonhos.

Vários lugares eram obrigatórios ir para quem chegava para ficar ou estava de passagem em Santa Maria: na Basílica da Medianeira, nos cinemas da cidade, passear pela UFSM e se deslumbrar com seu magnífico planetário e, porque não, borboletear pelo calçadão da Bozzano.

Ao falar em chegada, lembro-me que, naquela época, era dificílimo chegar à santinha de avião. Avião, para nós pobres mortais, era a menina que flanava macio pela “Primeira Quadra da Bozzano. O acesso a Santa Maria era muito mais lírico. Rasgávamos os morros da “Boca do Monte” de trem. A velha viação férrea era um “baita” ponto de encontro para quem ia e vinha. Como a passagem do tempo era outro e nosso tempo dentro do velho trem era enorme para se chegar a qualquer destino, o trenzinho transformava-se num excelente lugar para arrumar namoro. Nosso trem não possuía a velocidade de uma flecha, mas configurava-se como um maravilhoso cupido.

Neste perene fluir entre o passado e o presente, eu posso afirmar que a santinha da “Boca do Monte”, cravou em meu SER marcas culturais e, infelizmente, físicas. Aqui, com a mediação da UFSM, fui capaz de me apropriar de um conhecimento profissional. Como consequência tive solenidade de formatura e todas suas decorrências. Como manda o protocolo, muitas coisas de grã-fino tive de fazer uso na época: sapato de bico fino (moderníssimo para aquele tempo), terno e gravata.

Baile de formatura. Noite de Gala no Clube Comercial. Casaco, gravata, camisa social e calça social foram, todas, peças emprestadas com diferentes amigos para o sonhado baile.

Foi histórico o dia, foi linda a formatura e maravilhoso o baile. Como tinha que ser, alguma coisa necessariamente não poderia dar certo. E, infelizmente, não deu. Como nunca tinha usado “sapato de bico fino” (desculpem novamente o trocadilho, eu não era um jovem fino), a partir da metade do baile o tal sapato, como estava num pé que até então lhe era muito estranho, começou a apertar e, pela euforia da noite e insistência na dança, gerou um magnífico calo que, apesar da passagem do tempo, teima fazer-me companhia nesta, por que não dizer, maravilhosa travessia da vida.

Nunca esquentei a cabeça com o tal calo, muito pelo contrário, ele se transformou em um marco das mudanças de rumo que dei para minha vida e para as formas de ver a condição do humano se transformando no devir do mundo e fazendo História. Como construímos uma relação afetiva, denominei de “Nicanor” esse colega de viagem!

Santa Maria mudou. Santa Maria se modernizou. Eu mudei. De um menino que desfrutava o ambiente bucólico de Tupã e sonhava com uma formação profissional, construí meus fazeres e saberes profissionais através da luta árdua, mas prazerosa, com o conhecimento. Mudaram as formas de comunicação e as formas como as pessoas se relacionam afetiva e romanticamente.

Não uso terno e, provavelmente, jamais usarei sapato de “bico fino”. Uso internet e telefone celular. Garimpando palavras para construir ideias, hoje volto a ser um menino travesso, pois sou capaz de esgravatar os porões da alma humana para fazer de seus medos e alegrias alguns motes para compor versos.

Tudo muda o tempo todo, diria o grande Heráclito de Éfeso. Santa Maria mudou, eu mudei e mudaram as pessoas que configuram o coletivo da alma humana da “santinha da boca do monte”.

Hoje em dia não existe mais a chamada quarta-feira do sofá. Não podemos mais nem dizer para um amigo que ainda não se deu conta de algo que não poderia ter feito, como se dizia em outros tempos: “meu camarada não te caiu a fixa?” Não existe mais a velha CRT e seus orelhões movidos a fixas. Hoje nos comunicamos com o uso do cartão. Não temos cinemas de calçada, o sapato da moda possui “bico” quadrado e, nossas vidas no mundo das trocas econômicas são governadas pelos moderníssimos códigos de barra. Bailes, pelo que sei, só ocorrem para pessoas da “melhor idade”. A rapaziada se encontra e beija na boca nas infindas “baladas” que a noite santa-mariense propicia.

As linhas férreas continuam cravadas nos caminhos que chegam e saem de Santa Maria. Os trens transportam cargas, mas não carregam gente para apreciar o quão magnífica é nossa geografia. As casas dos ferroviários viraram “vila belga” e a velha estação virou “Gare” e transformaram-se em patrimônio histórico de nossa cidade, sendo a atual sede da secretaria da cultura. Hoje temos “linhas aéreas” e, portanto, podemos fazer “ponte aérea” com as metrópoles do país. Não temos trem para subir o Perau, mas a revitalizamos para continuarmos descortinando a beleza de nossa “Boca do Monte” a partir de uma visão privilegiada. Nossos morros continuam estéticos e sedutores. Modernizamos-nos, mas com carinho e lirismo queremos continuar contribuindo para compreendermos e aprimorarmos nossa cidade e nosso tempo.

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