Artigos

Celso Furtado e a Nova República – por Leonardo da Rocha Botega

Um pouco de um dos mais inquietos pensadores brasileiro de qualquer tempo

“O grave é que não existe no país nenhuma corrente de pensamento realmente válida, indicando soluções de problemas fundamentais. A tragédia social se agrava e alastra. As massas de desempregados e subempregados acampam por toda parte. Com a penetração da droga, a criminalidade organizada aumenta e cresce de poder. As condições de vida de grande parte da população são calamitosas. Por outro lado, as elites se deixam embalar por um liberalismo imbecil e de imitação e procuram desmoralizar o Estado, único instrumento que dispomos para enfrentar os problemas criados pela industrialização tardia e pelo consumismo mimético”.

A reflexão acima foi feita pelo economista brasileiro Celso Furtado no dia 17 de fevereiro de 1988. O então Ministro da Cultura anotava, em um dos cadernos que mantinha desde a juventude, suas impressões sobre o que o país estava vivenciando em meio ao processo da Assembleia Constituinte. Ali estava nascendo a Nova República e o principal desafio era justamente consolidar a democracia e espantar de vez os fantasmas do autoritarismo ditatorial que ainda rondavam a política brasileira.

Celso Furtado, que já havia ocupado cargos na CEPAL e na ONU, sido o principal responsável pela criação da Sudene e seu superintendente ao longo de três governos (JK, Jânio Quadros e Jango), professor universitário nos EUA e na Europa durante o exílio, ingressava pela primeira vez na política partidária.

Juntamente com Luciano Coutinho, Maria Conceição Tavares, José Serra e Luís Gonzaga Belluzzo formou a equipe que construía o programa econômico do PMDB (maior partido de oposição à cambaleante Ditadura Civil-Militar) e também da candidatura Tancredo Neves.

A ideia da construção de um novo pacto social ancorado em um projeto nacional de desenvolvimento que tirasse o país da crise, combatesse a miséria e consolidasse a democracia, era sua verdadeira obsessão. Foi por isso que optou por permanecer no Brasil, mesmo diante de inúmeros convites para atuar em universidades e órgãos de pesquisa no mundo todo. Foi por isso que aceitou, mesmo ciente de todas as contradições que iria vivenciar, assumir o Ministério da Cultura no governo José Sarney.

Mesmo sendo crítico da política econômico-financeira que vinha sendo adotada, optou por ficar calado, “pelo menos durante algum tempo”; afinal o que estava em jogo era o processo de democratização. Um silêncio público que não era acompanhado pelo silêncio de bastidores. Ao longo de todo o tempo em que esteve no governo, Furtado não deixou de expressar suas opiniões críticas quando dialogava tanto com o presidente, quanto com os principais líderes do Congresso, como o deputado Ulisses Guimarães, com quem teve uma certa proximidade.

Furtado viu e vivenciou de perto um processo onde a ideia de construção de um Novo Brasil foi sendo pragmaticamente reduzida à ideia de uma Constituição e de uma Nova República “possível”. Presenciou o enfrentamento político das “velhas raposas” na busca de espaços no futuro governo Tancredo Neves.

A luta entre o presidente Sarney e o presidente da Assembleia Constituinte Ulisses Guimarães sobre o tempo do mandato presidencial. Uma luta que resultou na derrota do parlamentarismo (forma de governo que tanto Furtado, como Ulisses defendiam), na ascensão do Centrão (esse verdadeiro parasita que até hoje domina a política brasileira) e na derrota daqueles que lutavam para que o PMDB não se tornasse um mero partido de caciques regionais.

Celso Furtado deixou o ministério em 28 de julho de 1988. Junto com ele também deixaram o governo os ministros Renato Archer, da Previdência Social, e Luiz Henrique da Silveira, da Ciência e Tecnologia. Os “autênticos” do PMDB não aceitaram o fato de o presidente ir à televisão criticar a Nova Constituição que estava prestes a nascer. Haviam engolido “muitos sapos”, mas aquele era o limite. Não se podia aceitar que o presidente atacasse o instrumento que estava consolidando a transição democrática.

Após sua saída do governo, Furtado resolveu deixar de lado a própria política partidária. Não se encaixava na lógica dos acordos do poder. Voltou à condição de intelectual público, onde podia expor suas ideias com a necessária radicalidade da crítica. Seguiu refletindo sobre o Brasil e o mundo, tanto na esfera pública, quanto em seus “Diários Intermitentes”, publicados em 2019.

Foi em uma das anotações nesses diários que escreveu, em 27 de dezembro de 1984, que a classe política brasileira estava “desgastada, deteriorada e demasiado ansiosa para ocupar espaços”. Era necessário surgir uma nova geração política, “que possa perceber a realidade com outros olhos”. 

Celso Furtado faleceu em 20 de novembro de 2004. Em 2020 foi celebrado o Centenário de seu nascimento. Foi um “esperançoso pessimista” e nessa condição assistiu e até mesmo antecedeu diagnósticos do que se tornou a Nova República.

O PMDB que queria construir como o partido garantidor da democracia se tornou um dos principais articuladores do golpe de 2016. A grande política que tanto saudava foi atropelada pelo varejo das negociatas das benesses do poder. A Nova República se esgotou na ascensão da política das milícias ao governo.

Talvez tenhamos que esperar mais um pouco, pelo menos até o país voltar a ter os mínimos civilizatórios que parecia ter conquistado, para o renascer de sua tão sonhada “nova geração política”. Enquanto isso seguimos em nossa “esperança pessimista”. É ela que não nos deixa naufragar. É ela que nos faz ainda acreditar que podemos acordar, em 1º de janeiro de 2023, em um país que voltará a lutar pela sua reconstrução.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Nota do Editor. A foto de Celso Furtado, que ilustra este artigo, é uma reprodução obtida na intenet.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Um Comentário

  1. Apesar de algumas discordâncias teóricas, é preciso reconhecer que um país sem um projeto nacional de desenvolvimento não vai a lugar algum. É preciso superar a miséria e consolidar a democracia. Contudo muitos dos que se encontram na arena política, não fazem a menor ideia. Parabéns pela análise, prof. Leonardo Botega.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo