KISS. O tal de SIGPI surge como grande vilão da tragédia, pelo menos no depoimento dos bombeiros
Mas, afinal, do que se trata o agora famoso SIGPI, que vem a ser o Sistema Integrado de Gestão de Prevenção de Incêndio, adotado pelo Corpo de Bombeiros gaúcho para agilizar (sim, era o que acontecia) o alvará dos empreendimentos interessados?
O documento foi a grande estrela dos depoimentos prestados entre terça-feira e esta quarta, no processo que corre na Justiça Militar, e que tem como réus integrantes da corporação em Santa Maria, por conta do incêndio na boate Kiss – que matou 242 jovens e feriu pelo menos outros 600, em 27 de janeiro.
Para entender a interpretação do editor, acompanhe a reportagem assinada por Luiz Roese (texto e foto), e que integra a edição impressa do jornal A Razão desta quinta-feira. A seguir:
“Por iniciativa própria, nem sempre só o SIGPI era usado…
…Mais uma vez, o Sistema Integrado de Gestão de Prevenção de Incêndio (SIGPI), ferramenta que passou a ser usada pela Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul em 2005, para conceder o alvará correspondente, foi o centro das atenções no segundo dia de audiências do processo criminal da tragédia da Boate Kiss na Justiça Militar. A primeira série de depoimentos das testemunhas de acusação, chamadas pelo Ministério Público, terminou ontem.
No primeiro depoimento de ontem (quarta), um sargento do Corpo de Bombeiros relatou como foi a implantação do SIGPI. Vilmar Silva do Nascimento contou que, em Três Passos, onde servia, mesmo quando o software passou a ser utilizado, sua unidade não deixou de exigir, para o alvará, memoriais e plantas físicas de estabelecimentos e moradias.
“A ferramenta não nos dava segurança naquele momento. Ao acelerar o processo (de concessão de alvarás), você colocava uma carga muito grande nas costas do inspecionador”, comentou o sargento Vilmar. O bombeiro, que atualmente serve em Cruz Alta, chegou a participar da força-tarefa montada para atuar em Santa Maria, em abril e maio, para ajudar nas vistorias para obtenção dos alvarás de prevenção contra incêndio, após a demanda ter aumentado em virtude da tragédia da Kiss.
Vilmar ainda disse que, antes da implantação do SIGPI, houve, em Caxias do Sul, uma reunião de avaliação do software que seria usado, com representantes da empresa responsáveis. Na época, antes de 2007, de acordo com o sargento, vários integrantes dos bombeiros, de diferentes comandos, eram contra o uso do novo sistema. Eles defendiam que ele só deveria ser usado para Planos de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCIs) simplificado (para salas de pequeno porte).
A ordem para que o SIGPI fosse implementado acabou vindo depois, de baixo para cima, do 10º Comando Regional dos Bombeiros, com sede em Ijuí. Mesmo assim, para ter mais segurança e por iniciativa própria, os integrantes da Seção de Prevenção contra Incêndio (SPI) de Três Passos continuaram a exigir plantas e memoriais, conforme determinava a Portaria 64, do Corpo de Bombeiros, mesmo que não tivessem mais a necessidade de fazer isso. “O programa (do SIGPI) é como um banco de dados. Há possibilidade de você deparar com uma situação que não é contemplada por ele. Por isso, a importância das plantas e dos memoriais”, explicou Vilmar. E acrescentou: “Para o vistoriador, o programa dava a capacidade somente para quem tivesse um conhecimento técnico muito grande. São muitas portarias, resoluções e leis envolvidas”.
Vilmar disse ainda que chegou a passar, ao seu comando regional, as preocupações a respeito do SIGPI, para que para que a empresa W3 fosse comunicada, a fim de que software fosse atualizado. Mas ele não sabe se as observações foram adiante.
O segundo depoimento do dia foi do bombeiro Carlos Alberto Carvalho Maciel, que atua na Seção de Prevenção a Incêndio (SPI) do 7º CRB, em Passo Fundo. Com experiência de 18 anos, ele relatou como viu a implantação do SIGPI. Apesar de as plantas terem sido dispensadas a partir do novo sistema, ele e os colegas continuaram a exigir plantas para estabelecimentos classificados como F6 (locais de reunião de público). Detalhe: ele acreditava que isso fosse feito sem o conhecimento do chefe da SPI. “Nós mesmos achamos prudente fazer isso”, comentou.
Maciel, que também atuou na força-tarefa de Santa Maria, revelou também a realidade dos pedidos de alvará em Passo Fundo: são 50 solicitações por dia e aproximadamente 20 dias de espera. De acordo com ele, há, no máximo, 200 pedidos na fila. Com 18 anos de experiência, o bombeiro também sentenciou: “Dificilmente se consegue ter um estabelecimento que atenda todas as normas”.
O terceiro depoimento do dia e o primeiro da tarde foi do tenente da reserva Volmar Machado Palma, que atuou no SPI do 4º CRB, três anos como inspecionante. Para a implantação do SIGPI em Santa Maria, em 2007, ele relatou que foi orientado apenas “superficialmente”.
De acordo com Palma, mesmo após o SIGPI, que havia situações em que era exigido o PPCI completo, com plantas e memoriais, mas, segundo ele, a Boate Kiss não se encaixava nesse caso. Sobre o fato de esses documentos não serem mais obrigatórios, apesar de essa condição ter sido estabelecida pela portaria da Brigada Militar 064/EBM/99, Palma comentou que entendia que todas as normas vigentes já estavam inseridos no novo sistema. Ele ainda destacou que, em Santa Maria, recebeu ordens para não observar mais a Lei Municipal 3301, que, entre outras coisas, exigia alarme de incêndio em locais de reunião de grande público.
Palma foi um dos dois bombeiros que fizeram a primeira inspeção na Boate Kiss, em 2009, com vistas ao alvará de prevenção de incêndio. Na ocasião, segundo ele, todas as exigências foram cumpridas. Não havia um botijão de gás sequer lá dentro. Pelo que Palma tem conhecimento, na ocasião do incêndio, a casa noturna estaria bem diferente da vistoriada por ele. Cabe ressaltar que, para verificar a metragem de 600 metros quadrados, o bombeiro usou uma trena particular, pois não havia equipamentos suficientes na SPI.
O último depoimento foi do sargento Adriano Santos da Silva, que também participou da inspeção na Kiss em 2009. Ele atuou na SPI do CRB de Santa Maria de 2001 a 2011, oito anos como inspecionante. Adriano destacou que a boate que pegou fogo em janeiro de 2013 era completamente diferente da vistoriada por ele e Palma. “Era um pavilhão único, totalmente aberto (em 2009). Não tinha grades, não tinha nada”, disse Adriano, que chegou a entrar na Kiss após o incêndio.
Adriano participou da implantação do SIGPI em Santa Maria e destacou que ele não incluía a portaria 064 e a lei municipal 3301. Ele também ressaltou que, quando se chegava à conclusão que era necessário um laudo técnico, era exigido um responsável técnico.
Outro fato destacado por Adriano é que, nos meses de verão, os pedidos de vistoria costumavam se acumular, pois, segundo ele, “70% do efetivo vai para o Litoral”, por causa da Operação Golfinho. O bombeiro lembrou ainda que, após a obrigatoriedade do curso de prevenção contra incêndio para estabelecimentos, em 2009, houve uma consulta ao Comando do Corpo de Bombeiros, e eles mandaram “cancelar essa exigência do curso”.
Dos oito bombeiros denunciados pelo MP à Justiça Militar, o ex-comandante do 4º CRB, Moisés da Silva Fuchs, atualmente chefe do Estado Maior do Comando Regional de Policiamento Ostensivo (CRPO) Central, foi apontado por crimes mais graves no Código Penal Militar. A primeira denúncia foi em relação ao artigo 312 do CPM: inserir declaração falsa com o fim de alterar a verdade em documento público. Pelo mesmo crime, foram denunciados pelo MP o tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano e o capitão Alex da Rocha Camillo, ex-chefes da Seção de Prevenção a Incêndios do 4º CRB.
De acordo com o MP, em agosto de 2009, Fuchs e Adriano expediram o primeiro alvará dos sistemas de prevenção e proteção contra incêndio da Kiss e fizeram constar no documento a boate foi inspecionada e aprovada “de acordo com a legislação vigente”, mesmo sem terem sido observadas leis municipal e estadual. Em agosto de 2011, Fuchs teria feito o mesmo novamente, desta vez com Camillo, na expedição do segundo alvará da Kiss, com o acréscimo de não exigir prévio certificado de treinamento de pessoal, conforme exige resolução técnica da Brigada Militar.
Fuchs foi denunciado, ainda, por prevaricação (artigo 319 do CPM), pois deixou de punir ou de instaurar Conselho de Disciplina para possível exclusão do sargento Roberto Flávio da Silveira e Souza por ser sócio/administrador da empresa Hidramix, que atua no ramo de “sistemas de prevenção a incêndio”.
Já os soldados Gilson Martins Dias, Vagner Guimarães Coelho e Marcos Vinicius Lopes Bastide, o sargento Renan Severo Berleze e o aluno sargento Sergio Roberto Oliveira de Andrades respondem pelo artigo 4 do Código Penal Militar (descumprimento de lei, regulamento ou instrução). Todos os réus compareceram à audiência desta quarta.
Para ontem, estavam previstos sete depoimentos, mas apenas quatro foram tomados. Na audiência de terça, 10 depoimentos foram programados, mas o tempo de duração permitiu que apenas seis falassem. Todos os sete que não depuseram ficaram para os dias 9 e 10 de dezembro, de acordo com a juíza Viviane de Freitas Pereira, que preside o processo da Justiça Militar.
A engenheira Josy Maria Gaspar Enderle, dona da Marca Engenharia, também foi chamada pelo MP para depor, mas enviou um atestado médico como justificativa para não comparecer. Como o tempo do atestado não está especificado, o promotor Joel Oliveira Dutra pediu que o médico responsável seja notificado a informar o tempo que ela ficará de licença e se poderá depor ou não. Uma testemunha de acusação também irá depor em Porto Alegre, por meio de carta precatória, em data a ser agendada.”
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Falta efetivo nos bombeiros. Reuniram-se dois fatores perigosos: falta de fiscalização (ou fiscalização precária) com legislação ultrapassada. Tanto é verdade que, depois da tragédia, os métodos de fiscalização mudaram e a legislação está sendo modificada.
No caso da boate, se lembro bem, eram exigidas (ou são, a norma não mudou pelo que sei) duas saídas. Mas não existia obrigação de serem em pontos diferentes do estabelecimento. Logo, poderiam ser uma ao lado da outra. Logo, coloca-se uma saída só com a área total igual a soma das 2 saídas previstas inicialmente. Se lembro bem, foi este o raciocínio, só que faltaram 40 cm na largura total.
O negócio é desconfiar sempre que alguém afirma que a legislação é “super-moderna”, “coisa de primeiro mundo”. Geralmente é deficiente e será mal fiscalizada.
O maior problema que o Estado cria as Leis e não tem gente competente para executar hora estas inspeções teria obrigatóriamente que ter a supervisão de um engenheiro com em outros Estados por exemplo Santa Catarina, por esse motivo deveria parar todas estas vistorias até que o estado disponibilizasse um engenheiro para analizar, e quanto a Kiss, é inadimisivel que uma boate funcione com uma porta só para entrar e sair.