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O bairrismo gaúcho de cada dia – por Leonardo Foletto

Passados as eleições mais tensas dos últimos anos, podemos todos retomar os amigos (se perdidos), fora e dentro das redes sociais, e retomar a vida “normal”, porque, pra bem ou pra mal, o resultado do pleito presidencial e estadual está aí e nada vai mudar, certo?

Bueno, não é bem assim. Como disse o Gregório Duvivier, ator, escritor e uma das grandes revelações brasileiras como cronista nos últimos tempos, parece que a única maneira de não perder tempo brigando por política daqui a quatro anos como fizemos agora é passar os próximos quatro anos perdendo tempo com política. Não precisamos fazer do clima de guerra destas eleições a tônica cotidiana dos nossos dias, mas necessitamos continuar o debate diário sobre política, seja nas macroesferas do poder nacional quanto (principalmente) nas micros do nosso dia a dia. Na fila do banco, no café no calçadão, no banco da praça, na mesa da sala de casa e também nas redes sociais (por que não?), pois só com o debate e o exercício diário da argumentação e do se colocar no outro lado é que construiremos uma país mais plural, melhor informado e tolerante com o diferente.

Quer um exemplo recente de como a política está no dia a dia de maneira quase “imperceptível”? Pois então vai lá: em coluna de ontem em Zero Hora, o jornalista da RBS Tulio Milman, que foi mediador do debate para governador no 2º turno, escreveu, entre outras coisas, isso:

Cara presidente Dima: Ministério da Fazenda, Banco do Brasil, Caixa Federal, Petrobras ou BNDES. Se a senhora tem mesmo compromissos com o Rio Grande, entregue a um gaúcho o comando de um deles. Tradicionalmente, os postos-chave da economia ficam nas mãos de políticos e técnicos ligados ao Sudeste. (…)

Um gaúcho, de preferência um nome novo e sem vícios, que trabalhe pelo Brasil. Não desses que nasceram aqui e foram embora muito cedo. Um gaúcho que conheça nossa matriz econômica, que já tenha visitado a Fenadoce, o Itaimbezinho, que tenha se banhado nas águas de Tramandaí, que não precise de GPS para transitar pelas ruas de Porto Alegre. Seria, presidente, um ato de coragem”.

É o caso exemplar de como uma coluna, de pouco mais de três parágrafos, pode semear o preconceito, a intolerância à diferença e o bairrismo, que, sabemos, já é tão exacerbado aqui no Rio Grande do Sul. Esconde, por trás de um discurso de apelo à presidenta, um pensamento – que é político sim – de que “somos melhores” e precisamos estar representados, como se origem, e não competência, fosse um indicativo fundamental para avaliar o trabalho de algum ministro.

Confesso que fiquei decepcionado ao ler o texto de Tulio Milman – nem falo dos comentários, que explicitam ainda mais o preconceito do texto. Considerava-o um jornalista que, do pouco que acompanho, vinha se mostrando ponderado e respeitoso com as diferenças, além de conhecedor da responsabilidade social que tem a profissão ao lidar com muitas pessoas. Mas li e lembrei de todo o esforço que eu e muita gente faz em valorizar a cultura de um outro sul que não o caricato, bairrista e “tradicionalista” cultivado pelos CTGs. Em, também, tentar mostrar o óbvio parentesco gaúcho com o “sul da terra” e a América Latina através da cultura comum do pampa e da proximidade com a região do Prata, de forma a ressaltar que, com essas especificidades, é ainda mais lindo um estado como o RS fazer parte de um país tão grande e tão diverso quanto o Brasil, que tem trocentas culturas e estados completamente distintos uns dos outros.

Lembrei disso tudo e me peguei incomodado em ver um jornalista de uma mídia tradicional com um espaço “privilegiado” falar uma bobagem destas. Um tipo de discurso que só potencializa um bairrismo elitista e reacionário, de que somos melhores dos que os outros pelo simples fato de sermos originários de um determinado lugar. Se somos “diferentes” não é por termos uma cultura que é influenciada pela vizinhança do Prata, mas sim por ter essa inegável influência e também sermos profundamente brasileiros, negros, índios, italianos, alemães, espanhóis, portugueses – e, quem sabe daqui a algumas décadas, também haitianos, senegaleses e ganenses.

Ser diferente não significa ser melhor do que ninguém, que dirá a ponto de termos que pedir ministros “nossos” como um ato revolucionário da presidenta. Tulio Milman me lembrou mais uma vez que sim, gaúcho é bairrista pra caramba, e que só perdemos em respeito, tolerância e diversidade em nos vermos assim. O mais triste disso tudo é ver que esse imaginário está tão talhado em algumas pessoas, tão repetido sem reflexão por alguns veículos de comunicação (como a própria ZH) e por centros de tradição que deveriam manter viva e não fechada a regras duras a cultura dita gaúcha, que o esforço pra desfazer essa imagem parece ser em vão, e por não sei mais quanto tempo será.

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