Coluna

A batalha feminina – por Bianca Zasso

A reforma do ensino médio, proposta pelo governo federal, rendeu comentários até de quem não é ligado a área da educação, em especial na questão que previa a retirada da obrigatoriedade de disciplinas como filosofia e literatura do currículo. Quem meteu o bedelho fez mais que expressar sua opinião: exerceu sua cidadania. Não é preciso ser professor para concluir que o aprendizado vai muito além da sala de aula, de livros e cadernos.

O cineasta japonês Keisuke Kinoshita não só acreditava nessa premissa como fez dela o mote de um de seus mais sensíveis trabalhos. Vinte e quatro olhos (ou As 24 pupilas, na versão lançada nos Estados Unidos), chegou aos cinemas em 1954 carregando o frescor de uma protagonista sonhadora e insistente, ambos os adjetivos no melhor dos sentidos, mas só chegou ao mercado brasileiro de DVD há pouco tempo, pela distribuidora Obras-Primas do Cinema.

Mera coincidência ou coisas do destino, o filme chega ao conhecimento de muitos cinéfilos num período onde o movimento feminista se renova e passa a fazer parte da ordem do dia também no ambiente escolar.

Vinte e quatro olhos acompanha a vida da professora Hisako ao longo de 20 anos, tendo como fio condutor sua relação com sua primeira turma de alunos, formada por sete meninas e cinco meninos, os vinte e quatro olhos aos quais se referem o título. Seria só mais um exemplar cinematográfico da cumplicidade entre mestres e aprendizes, mas Kinoshita foca sua câmera de uma maneira especial na troca de Hisako com suas alunas.

O ambiente é um Japão rural, ainda com influências do período feudal. O choque causado por uma jovem sorridente, vestida à moda ocidental e que vai ao trabalho de bicicleta, num tempo de quimonos e mães escondidas dentro de suas casas, é imenso. Brota a desconfiança, mas não em quantidade suficiente para murchar a vontade de ensinar. E não apenas a ler e escrever.

Plantar a dúvida, incentivar a arte e o sonho parece simples, mas é uma batalha para Hisako. Seus esforços para fazer as jovens mentes sob seus cuidados a pensarem passam até pela acusação de flerte com o comunismo. Ver suas alunas abandonando os bancos escolares para trabalharem ou cuidar dos pais perturba seu trabalho. Como ensinar sem se envolver? Como agir ao perceber que novas mulheres seguem velhos (e tristes) caminhos? Com troca. Com conselhos. Com afeto.

O início da guerra projeto um novo tema em Vinte e quatro olhos, onde as tristezas se sobressaem aos planos para o futuro, afinal, escolas viraram pequenos quartéis e não há espaço para professores com a índole de Hisako. É o breve momento em que ela percebe seus alunos homens sendo levados para o conflito e, mais uma vez, quem precisa do seu colo e das suas palavras são as alunas, agora nas posições de mães e esposas.

Todo este envolvimento é mostrado em ritmo de melodrama, porém sem os enquadramentos poéticos utilizados por mestres como Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi. Kinoshita faz seus versos por meio do roteiro, com poucos e precisos diálogos e muitos olhares, ora chorosos, ora saudosos.

O que corresponde ao último capítulo de Vinte quatro olhos é uma sequência de cenas de uma festa organizada pela turma preferida de Hisako em sua homenagem. Lembra, porém em proporções menores, a reunião do filme Madadayo, uma das últimas produções de outro mestre, Akira Kurosawa. Mas ao invés de grandes copos de cerveja e celebração, o cômodo tem suspiros, lágrimas e apenas um homem, que perdeu a visão na guerra, rodeado pelas colegas que, graças ao auxílio da professora, seguiram em frente caminhos diferentes, mas todos com pedras dos mais diversos tamanhos. Vinte e quatro olhos confirma com esta cena ser, antes de tudo, um filme feminino. Com todo o peso que esta palavra tem. Porque ser mulher, infelizmente, ainda é mais lágrima que flor.

Vinte e quatro olhos (Nijûshi no hitomi)

Direção: Keisuke Kinoshita

Ano: 1954

Disponível em DVD pela Obras-Primas do Cinema

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