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O Tiarajú de Itaara – por Pylla Kroth

Calor senegalês, ou melhor, santa-mariense, beirando 40 graus com sensação térmica de 50, me pus a pensar, se é que é possível nesta temperatura,  em um alternativa pra refrescar o corpo e a mente.

Me veio na lembrança um amigo de vários anos que agora aposentado adquiriu uma casa na serra de Itaara. Pronto. Achei o telefone na antiga agenda. “Alô. Prepara as coisas que o velho roqueiro vai finalmente te visitar”. ‘Quanto riso, oh, quanta alegria!’ “Venha cedinho para aproveitar bem o dia!”. E assim foi. Cheguei “cedito”, com minha roqueira. De mala e cuia. Como não gosto de ficar exposto ao sol, tratei de me ajeitar embaixo de uma bela árvore que, tomada por uma trepadeira, fazia uma sombra maravilhosa.

Peguei o jornal e, antes de começar o “lambe-lambe” das páginas, ouvi um barulho de enxada vindo do capinzal do terreno ao lado: era um senhor de pele negra numa lida brutal na limpeza do local. Largava a enxada, pegava a foice. ‘Minha Nossa Senhora!’ aquilo mais parecia um “Lanceiro Negro” em plena Revolução Farroupilha. Sol, suor, de vez em quando parava e se apegava em uma garrafa térmica e saboreava uma água gelada que chegou a me dar sede. Deveria ser umas 9:30 da manhã.

Voltei à leitura do jornal. Pra mim ler jornal é um ritual: consumo página por página, artigo por artigo, letra por letra. E agora quem parava para um gole de água santa e purificada era eu. E o cheiro do churrasco começando. Quando menos espero, ouço o grito do convite da carne que estaria no ponto. Sento à mesa e, ao ver toda a fartura, fiz como tenho por cultura familiar: orar  que seja em silêncio antes da refeição “daí pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão”.

Tá, mas e na prática? E o pobre peão crioulo ali ao lado? Será que o patrão dele vai trazer uma “bóia”? Será que ele trouxe a marmita, quentinha, marmitex? Bueno, vejamos o que sobrar e irei levar alguma coisa. “Pança” cheia, fui tratando de juntar uns pedaços de carne para o matusalém, “negro velho”. Quando chego perto da cerca, levanto a cabeça para avistar, olho para baixo, nada do velho, olho pra cima e avisto sua “nega véia” que até então eu não havia percebido, embaixo de uma goiabeira, com um fogo de chão e um tripé de ferro e uma panela dependurada, muito bem montada por sinal, já almoçando.

Baixei a cabeça e voltei para dentro. À tarde, depois de uma pestana,  resolvi ir novamente até a cerca, “fiscalizar” o trabalho da capina e do roçado. “Nossa!” Comentei com quem estava ao meu lado “Esse peão facilmente seria contratado lá na colônia onde me criei”. Lá fora, como dizem, escolhia-se os trabalhadores negros pela “grossura da canela”. Alemoada danada, diziam que “negro da canela fina é bom de enxada, negro da canela grossa é ruim de enxada, longe da minha plantação” Na história, mais tarde, fui descobrir o porquê.

O fato é que o dia voou e no final da tarde, nova “vistoria”. Que coisa mais linda de ver! Tinha virado um campo limpo, o capim e o matagal estavam empilhados. Não me contive e fui até a cerca e gritei: “Parabéns, índio velho! Teu patrão vai gostar muito do trabalho! Te acompanhei o dia todo e vou lhe dizer: você é um trabalhador muito bom.”

Calmamente e limpando as mãos e a nuca em um pano úmido, ele se aproximou de mim, com um olhar de felicidade e respondeu: “Agradecido, “branquelo”. Levei minha vida trabalhando pra adquirir este pedaço de chão que agora tem dono”.

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