Coluna

A menina do joelho esfolado – por Bianca Zasso

Crianças merecem respeito. Afinal, estão descobrindo o mundo e esta tarefa não é das mais simples. Pena que alguns diretores pensem que criar para crianças seja algo fácil e que qualquer historinha basta para prender a atenção. É preciso bem mais que clichês para manter pequenos olhinhos interessados na tela e parece que um rapaz da Estônia sabe bem disso. Margus Paju já não é mais um menino, mas parece ter buscado nas lembranças da infância o fôlego para dirigir A Sociedade Secreta de SoupTown.

Baseado em uma série de livros infanto-juvenis escritos por Mika Keränen, o filme deixa claro sua atmosfera de aventura desde os créditos iniciais. O clima bucólico da cidade de Tartu, onde anualmente acontece um festival de verão com teatro, dança e música, é o pano de fundo para a Mari andar com sua bicicleta para cima e para baixo. Só que ela não está a passeio. Ao lado dos amigos Sadu, Olav e Anton, ela formou a sociedade secreta que dá título ao longa e todos os dias ganha do avô uma tarefa para ser resolvida, sempre envolvendo códigos, mapas e tesouros.

Os pais de Mari são preocupados com o excesso de lúdico da relação da filha com o avô e disputam, de maneira muito sútil, que a menina escolha um caminho ou para a ciência, ou para as artes, mais precisamente o balé, já que o pai dirige espetáculos. Mas uma breve observada em Mari basta para entendermos que estamos diante de uma protagonista incomum.

Mari é uma menina de verdade. Por mais que as cores que a cercam sejam estilizadas, num trabalho bem detalhista da direção de arte do filme, e sua cidadezinha natal não tenha os perigos que uma metrópole apresenta, Mari está sempre pronta para a batalha. De bermuda, mochila equipada e pé firme no pedal da bicicleta, a garota não tem medo de se sujar e nenhum muro parece tão alto para ela. Sua parceira de aventuras, Sadu, que tem um visual que lembra muito o de Liv Ullmann em Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, apesar de mais sonhadora, também não se importa em rasgar o casado ou pilotar um barco para resolver problemas.

Já os dois garotos, Olav e Anton, dividem com Mari um traço pequeno, mas que diz muito: os três têm os joelhos esfolados. Um detalhe insignificante? Não quando se trata do retrato feminino da infância. Só quem já foi menina e esfolou joelhos, cotovelos, testa, queixo ou o que for sabe o que são os olhares de julgamento. Se caiu, é porque não estava fazendo coisas de mocinha. E quem diz isso se julga adulto e maduro.

Por falar em adultos, faltou dizer que A Sociedade Secreta de Souptown tem toda sua narrativa em cima de uma fórmula que faz adultos agirem como crianças e que se espalha pela cidade pelas mãos de um mascarado. O antídoto, criado por um tio do avô de Mari, foi escondido com uma série de códigos registrados em um caderno e cabe a Mari e sua turma desvendá-los. Em 48 horas, diga-se de passagem.

A fantasia, e até mesmo a fotografia do filme, plantam a nostalgia em quem acompanhou as produções hollywoodianas dos anos 80, como Os Goonies e Conta Comigo, mas se diferencia por esconder na história de poções mágicas a cegueira que a correria de ser gente grande nos causa diante das crianças.

Mari apresenta todos os argumentos para que os pais a ajudem a encontrar o antídoto, mas suas caras de piedade não desmancham nunca. Parecem dizer “são coisas da sua imaginação”. Tratar a ânsia por aventura, em especial a de uma menina, como uma brincadeira que não deve se estender para a vida adulta, é atitude de muitos e A Sociedade Secreta de Souptown não teme colocar o dedo nessa ferida.

Como todo filme “para crianças”, a produção de Paju quer falar também aos adultos, principalmente os que acompanham seus filhos ao cinema por obrigação e não para desfrutar da história. A diferença é que, ao invés do papo chato e formal de quem já não brinca, a linguagem utilizada é banhada de sonho e diversão. E não adianta disfarçar na saída do cinema. Seus filhos sabem que você ficou pensando no modo como os trata. Criança não é boba. Senão, não renderia tão boas histórias.

A Sociedade Secreta de Souptown (Supilinna Salaselts)

Ano: 2015

Direção: Margus Paju

Disponível na plataforma Netflix

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