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Jacaré – por Pylla Kroth

O guri tinha um sonho – “e qual guri não tem?”: ter uma motocicleta.

Vindo de família humilde e trabalhadora, ficava vendo os outros que tinham condições de obter uma máquina quente pra sentir o sopro do vento balançando as melenas, ora por que já trabalhavam em empresas e eram bem remunerados , ora por que o papai ou a mamãe lhes presentearam. Mas este menino era auxiliar de pintor do pai, seu ganho dava apenas para ir ao cinema, comprar um sorvete, balas Chita ou uma caixa de break mirabel e saborear aos finais de semana com o dinheiro que o pai lhe dispunha, pois os gastos eram pra manter a família. Ficava ele em volta das motocicletas dos amigos e por vezes até subia em uma quando o dono permitia.  Já andar, que é bom… nada.

Certa vez, se aproximou de um forasteiro que estava passeando pela cidade, visitando parentes, lhe deu todas dicas das garotas e dos locais bons de freqüentar, em troca de uma voltinha na moto. Este olhou para o menino e perguntou: “sabes andar?”, ao que ele sem titubear respondeu: “mas é claro!”, mesmo sem nunca ter andado, e aceitou dar uma voltinha na danada de 250 cilindradas. Ninguém por perto pra lhe desmentir, pegou a chave e, como era bom observador, já havia tirado todas suas duvidas de como dirigir o cavalo de aço, subiu , pensou: mão direita – freio de mão, mão esquerda – embreagem, pé esquerdo – marchas, primeira pra baixo, as outras pra cima, pé direito – freio. Entre a primeira e a segunda, ponto morto, acende a luzinha verde no painel e pedala pra ligar, vai acelerando e largando a embreagem lentamente. Feito.

Arranca já dando um pinote de saída, acelera, troca de marcha, aumenta a velocidade e vai trocando de marchas, experimentando uma sensação indescritível de liberdade, sobe a avenida principal em alta velocidade vendo o mundo como nunca tinha visto. “Que liberdade! Que delícia!”, faz a volta e desce a avenida a 100 por hora. Pára, desliga a moto. Olha branco e tremendo pro dono da moto e confessa: “Foi minha primeira vez, não queria te dizer, valeu a pena mesmo, obrigado!” O forasteiro até lhe dá um elogio: “se foi a primeira vez, te saiu muito bem, parabéns”.

Aquele dia foi o maior passo que aquele garoto de apenas 16 anos tinha dado rumo aos seus sonhos. Durante dias pensava no prazer indescritível que teve. Depois do feito, fez várias tentativas pedindo aos que ele conhecia e tinham motos pra emprestarem para “uma voltinha”, o que nunca foi atendido.

Certa vez um desses, que várias vezes havia negado a moto pra ele, se deu mal, caiu, e veio a falecer. Tragédia. Aquilo foi uma tristeza na cidade, vários pais tiraram as motos de seus filhos temendo por suas vidas. Motoqueiro ficou mal visto na pacata cidade que se já tinha poucas motos, agora reduziu pela metade.

Morreu o menino motoqueiro, os pais não quiseram nem ver mais a moto do garoto, foi direto para o ferro-velho. Ninguém queria comprar os restos mortais da maldita assassina. Menos ele, o menino sonhador. Foi até o ferro-velho e perguntou ao dono do referido: “quanto quer pelo que sobrou da moto?”, e este lhe respondeu: “na verdade não sobrou nada além do motor! Portanto, me dê apenas o valor do motor e pode levar, se quiseres.”

E ele pensou, como fazer pra juntar a grana? Não era muito, mas era grana que ele levaria no mínimo uma ano pra juntar com seus ganhos escassos. Foi até seu amigo fiel e este lhe veio com uma idéia. Roubar os alto falantes das caixas de som do serviço de comunicação da escola onde estudavam. Das 15 salas de aulas pegariam apenas seis, colocariam as telas para as professoras não verem o furto, e assim só baixaria a potência sonora não deixando o furto ser percebido. As professoras, leigas, nem notariam, pois raramente usavam aquele serviço de som. Fariam três caixas, com tábuas de uma construção abandonada, telas de proteção pretas com tecido e ninguém veria os falantes. Estava assim feita a sonorização de algumas festinhas que resolveram programar em um porão dos avôs, cobrando ingresso e vendendo quentão e vinho com pinhão e pipoca a precinhos módicos, tirando assim o lucro necessário pra compra do motor da “assassina”.

Em menos de dois meses a grana tava na mão. Foram até o ferro-velho e, mesmo faltando uns trocados, conseguiram adquirir o objeto tão desejado. Pra levar até o porão do avô, o mesmo utilizado para as festinhas, transportaram em um carrinho de obras emprestado de uns pedreiros de uma construção, os quais eram muito camaradas. Fora do expediente. Lá estava o motor. Faltava a moto, mas pra quem já tinha feito até instrumentos musicais pra montar uma banda (isso é outra história a ser contada em outros tomos) e construído caixas de som que mandavam bem, quem duvida da capacidade é louco!

Começaram pelo quadro, depois de juntarem várias barras de ferros que eram o suporte de um portão abandonado, tudo bem medido, serraram e começaram as soldas feitas com um velho mecânico que simpatizava com os meninos pelas suas peraltices e idéias espertas. E não é que ficou bonita?! A direção, o guidom reto ficou uma coisa parecida com a moto do filme “Sem destino”, que haviam acabado de ver no cinema – um clássico estrelado por ninguém menos que Dennis Hopper, Peter Fonda e Jack Nicholson e que tinha na trilha sonora Steppenwolf, The Byrds, etc… há quem lembre!

– Amortecedores recondicionados que ganharam de um outro mecânico da cidade vizinha “muy amigo dos peraltas”. Rodas e raios montados por eles próprios, pois já tinham feito nas bicicletas, porque não fazer pra moto? E assim foi. Faltava o cano de descarga e o tanque, mas logo tudo se ajeitou no ferro-velho. Detalhe especial pro tanque: este era um galão oval, de um defensivo agrícola da Basf de 10 litros. A moto foi tomando forma. Vez em quando, se olhavam e davam risadas sozinhos, pois não estava muito com cara de moto. Aquilo mais parecia um bicho, melhor dizendo, “um jacaré”! E este foi o nome de batismo da danada. Mas e como conseguir registrar aquele animal como máquina de ferro? Bem, isso era pra depois.

Lixada, pintada de cor de jacaré mesmo, a pincel, chegou a hora de chamar o mecânico amigo pra fazer as devidas ligações para fazer a bichona funcionar. Chega o mecânico, dá uma gargalhada ao ver a dita cuja que era encoberta sempre com uma lona pra não despertar a atenção do avô. Era tudo feito secretamente, vez em quando alguém comentava na cidade, “aqueles dois estão quietos sem aparecer na rua, devem estar tramando algo!” Tinham lá seus motivos, volta e meia eles aprontavam uma na comunidade.

Gasolina tirada na surdina da camionete do vizinho na calada da noite, pois o tanque não tinha chave, é hora de ligar a bichana. “Vrum”! Pegou! Pegou!  Pegou! . O barulho, ou melhor dizendo, o “som” do motor e da descarga era algo de tremer a casa do véio avô, ensurdecedor, que logo desceu pro porão apavorado, mas ao se deparar com a Jacaré, não se conteve e caiu na gargalhada. “Só vocês mesmo!”.  Pois não é que o velho, sem falar nada, ia todas noites olhar a invenção? Fez uma advertência: “não tenho nada a ver com isso! não me compliquem a vida e tirem esse monstro daqui.” O mecânico olha pra ambos com cara de aprovação e confessa que teria um lugar pra esconder a dita cuja. Mas tinha que levar empurrando, desligada, pra não chamar a atenção da vizinhança.

E assim foi feito. Agora a “Jacaré” tinha até esconderijo! Finais de semana o mecânico colocava ela na carroceria da caminhonete e lá se iam pelas lavouras do interior, soltar a jacaré. Tudo era fantástico: saltavam valetas, atravessavam lavouras em tardes inesquecíveis. Agora a vida passara a ter sentido.

Andava tudo muito bem, até a meninada da cidade começar duvidar da dita moto.  Foi numa dessas que, sozinho, pois não estavam juntos os dois amigos inventores, o guri ficou brabo com as piadinhas da meninada que duvidara da existência da dita cuja, resolveu ir tirar a “Jacaré” da caverna secreta, sem combustível, passou na casa do velho pai, pegou dois litros de thiner e misturou com um litro de gasolina e botou a danada na avenida, para o espanto da gurizada que se encontrava na praça, aguardando a exibição do maluco que mandou aguardar meia hora que iriam conhecer a Máquina Furiosa.

Lá vem ele avenida abaixo! Salta gente pra fora das casas e do comércio, pois o barulho era grande. Lá vai ele, faz a volta e sobe em alta velocidade empinando a parte dianteira da “Jacaré”, passa pela praça sob aplausos,  e, na esquina, se atravessa o carrão do presidente da cooperativa rural, que se achava dono das ruas e não respeitava preferenciais. A “Jacaré” pega de boca no meio do carrão! Seu corpo voa como uma bala de canhão e aterrissa no gramado do canteiro central. Correria. Ele levanta e apenas dá uma limpada na calça e se põe a gritar pro velho que desmaia dentro do carro. Logo chega a policia. “Documentação! De quem é esse protótipo de moto?” Ninguém responde. Sai de fininho. Sua moto é aprendida. O sonho acabou.

Dias se passaram, a “Jacaré” estava detida no pátio da delegacia. Numa bela noite de chuva, chama seu velho amigo e resolvem que na madrugada irão resgatar a “Jacaré”. Pois já sabiam que de lá legalmente não conseguiriam jamais reaver a obra-prima. “Se não é mais nossa, pra eles não vai ficar!” Com a ajuda de um carroceiro amigo, cortaram a cerca lateral do pátio da delegacia. Arrastaram a jacaré e se bandearam noite adentro até a ponte do Rio Jacuí. No meio da ponte numa simplória e singela homenagem de agradecimento pelos momentos vividos, agradeceram a jacaré e jogaram-na na correnteza do rio. Foi um sepultamento digno de tiros de canhão. A “Jacaré” entrou para a história da pequena cidade, a polícia não pode fazer nada, pois ela que deveria dar explicação pelo sumiço inexplicável.

Trinta anos se passaram. E às vezes os dois amigos se encontram e relembram: “Foi um belo sonho, para realizarmos pagamos um preço que muitos não pagariam! Aquilo foi perigoso, mas foi uma bela escolha. Ah, Jacaré! Jacaré! Que tempos, vida, vivemos!”  Dizia Mário Quintana que “se as coisas são inatingíveis, ora, não é motivo pra não querê-las! Que triste os caminhos se não fora a presença distante das estrelas!”  Hoje em dia eles sabem: um guri pode não ter de tudo , mas na vida tudo se pode ter, quando se cria espaço para o sonho! Inclusive felicidade. Um dia tudo acaba mesmo, não é? Saudade eterna, oh “Jacaré”. Descanse em paz nas águas do Rio Jacuí!

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