Coluna

O turbilhão da vida – por Bianca Zasso

Parecia que ia passar. 2016 foi um ano de muitas perdas para o cinema e a Sétima Arte esteve entre as notícias do dia mais em função de obituário do que de novidades e descobertas. Com a chegada de um novo ano, esperança renovada e todo aquele papo que entra janeiro adentro mas acaba antes mesmo do carnaval chegar, tínhamos a sensação que 2017 seria diferente. Para a nossa tristeza, estávamos enganados.

Depois de, num intervalo de poucas horas, perdermos George Romero e Martin Landau, ambos já com idade avançada, mas ainda produzindo, a última segunda-feira nos ceifou Jeanne Moreau e Sam Shepard. Eu poderia tentar resumir a carreira de ambos, relembrar seus grandes momentos, fazer o que todo mundo fez. Mas me permitam ser menos colunista e mais cinéfila neste momento. Afinal, perdi dois “amigos”.

O termo parece um exagero para designar duas pessoas que nunca encontrei pessoalmente. Mas, prezado leitor, eu posso não ter dividido o mesmo ambiente do Moreau e Shepard, mas a presença deles foi sentida e teve peso nos meus dias. Tive a sorte de ter A noite como um dos primeiros filmes de Michelangelo Antonioni que assisti. Confesso que a estudante de jornalismo de pouco mais de 20 anos achou chato. Era um mundo muito distante aquele do casal em crise numa Itália sessentista. Mas uma imagem ficou na minha cabeça como um incômodo: a esposa de olhar perdido e poucas palavras interpretada por Moreau.

Uma década depois, rever A noite foi um soco. Eu não era mais a mesma e o filme tornou-se outro para mim e aquela mesma esposa ganhou de vez o meu coração. E ainda teve Jules e Jim, A noiva estava de preto, Diário de uma camareira…sempre Jeanne. Mesmo que seu sorriso tenha sido lindo, ela mostrava sua força quando emprestava sua feição triste para as personagens. Tinha tudo naquela face desoladora. Era o turbilhão da vida, como ela cantou no filme de Truffaut.

Ainda lidando com a passagem de uma das minhas atrizes prediletas, chega o aviso de que o ator, diretor, poeta e dramaturgo Sam Shepard havia partido. Num daqueles impactos que causam flashbacks dignos de filmes, voltei a ser a Bia de 14 anos que, motivada pela descoberta de um exemplar de Crônicas de Motel, resolveu arriscar palavras no papel.

Coisas escritas por um homem que tinha idade para ser meu pai me desvendavam. Diziam o que meu cérebro confuso devido aos hormônios não sabiam colocar em uma frase cotidiana. Veio Paris, Texas, roteirizado por Shepard, num VHS que quase não cumpriu sua missão devido à má conservação. Escritos com um pé no velho oeste, que eu descobria ser um dos meus lugares favoritos nunca visitados. Eram linhas onde se lia o turbilhão da vida. O mesmo que movia Moreau, mas em outro ritmo.

Viver é perder coisas pelo caminho. 2017 tem levado algumas de mim. Na rotina e na arte. Mas hei de sobreviver. Estrelas de cinema não se apagam enquanto houver um cinéfilo disposto a ver e rever um filme. Ou seja, duram para sempre.

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Um Comentário

  1. Sam Shepard era um figuraça. Tinha só o segundo grau. Ganhou um Pulitzer e fez parte da lista mais duas vezes. Falava que o pai era “um homem que bebia, um alcoólatra dedicado”. Convidado para trabalhar num instituto de pesquisas ( Santa Fé Institute) perguntou se haveria espaço para sua máquina de escrever (uma Olympia). Não gostava de computadores e editores de texto. Acabou encontrando outro, Cormac McCarthy (este usa uma Olivetti). Talento muitas vezes prescinde de diplomas.

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