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Lamentações dos Jeremias – por Orlando Fonseca

Desenho produzido por amigo do Jeremias, jovem morto no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Foto Redes da Maré / Divulgação

Tanto nas sagradas escrituras quanto nas estéticas escrituras, Jeremias tende a ser uma síntese de si mesmo, símbolo, figura que se afirma para além da linguagem. Principalmente a linguagem em sua liquidez, a que encordoa fonemas de água e sal, que não se sobressai pela boca e suas articulações, mas pelos olhos e suas cintilações. Mesmo quando lhe é vedado o pranto, este Jeremias feito de metáforas chora o seu interdito, seu silêncio lacrimal é feito de mudos queixumes. Só nas manchetes dos jornais é que Jeremias, ao menos no Brasil, é feito de carne e osso, e se põe, igual a tantas outras crianças, como escudo numa estúpida guerra urbana. Com balas que não são ícones abstratos, mas signos que ferem e matam. Pela sua inocência, pela sua vontade de vida comum e livre, pela sua inofensiva e frágil e vulnerável capacidade de construir sonhos, é o alvo preferencial de balas perdidas. Esse Jeremias, que sorri para a câmera, que é bom para os pais e colegas, deixa para nós as lamentações.

Profeta, o Jeremias protótipo foi incumbido pelo próprio Todo Poderoso a apontar para o povo escolhido os seus erros. Quando descobriu sua vocação, reclamou “não passo de uma criança”. E seria uma missão tal qual pesada essa de o Jeremias sair pelas vielas e becos do morro, no seu Rio de Janeiro conflagrado, a dizer para traficantes, usuários, policiais ou amigos da comunidade o tanto de errado que estão fazendo. Mas o Senhor tocou a boca daquele Jeremias e o fez profeta: “Eis que ponho na tua boca as minhas palavras”. Tudo o que não disse em vida, esse Jeremias, o nacional, falou em alto e bom som em sua morte trágica.

O poeta – que é o primo pobre do profeta – Cassiano Ricardo, em 1964, nos legou a sua escritura poeto-profética na obra Jeremias Sem-chorar. Em tempos de guerra-fria, de corrida espacial, de implantação de um regime de exceção no país, esse Jeremias tinha motivos de sobra para segurar o pranto. Brasileiro por nascença, humano por vocação, o poeta põe na boca de sua personagem as motivações para não lamentar, e elas se afiguram como esperança, fé na humanidade e seu destino – utópico – de buscar felicidade. Ninguém espera que na curva da estrada torta, em que uma lua morta já não indica o caminho, uma bala perdida interrompa a chegada em qualquer lugar. Fora da poesia, a comunidade lamenta: “Jeremias, perdão. Rio de Janeiro”.

O jovem Jeremias Moraes, 13 anos, vítima da violência, semana passada no Complexo da Maré, queria ser pastor, mas por enquanto considerava, como o seu xará hebreu: “não passo de uma criança”. Mas como também queria ser jogador de futebol, foi jogar uma pelada com os amigos. Um caveirão da polícia, que não entende das regras do jogo – ou melhor, tem as suas próprias regras -, que feito um zagueiro sem escrúpulos irrompe na realidade do dia a dia, acabou com o jogo. No meio do tiroteio, uma bala atingiu o peito do Jeremias, interrompendo os seus sonhos de ser alguma coisa para além dos conflitos na favela. Calou qualquer palavra que o Senhor tivesse colocado em sua boca. As lamentações são de sua mãe: “Deus me deu cinco filhos, agora só tenho quatro”; das autoridades: “É chegada a hora de pararmos de discutir sobre segurança pública. Já sabemos o que fazer. As causas das mortes violentas já foram elucidadas. Soluções exequíveis já foram propostas”; e do líder da comunidade: “as mortes das crianças não são casos isolados e até hoje o poder público não tomou nenhuma medida para rever o quadro de violência.” E todos os Jeremias repetem como o profeta, trocando Jerusalém pela Cidade Maravilhosa: “Chora e chora de noite, e as suas lágrimas lhe correm pelas faces; não tem quem a console entre todos os que a amavam”.

 

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