Água e sangue – por Bianca Zasso

Um filme de ação, por mais que se proponha a ser profundo, sempre privilegia as mortes, os tiros e a correria. E, por mais mistério que seja o seu protagonista, os motivos de suas motivações são revelados desde os primeiros momentos da trama.

Você nunca esteve realmente aqui, quarto longa-metragem da diretora Lynne Ramsay, possui todos os elementos para ser encaixado no cinema de ação. Mas a sensibilidade da cineasta, que também assina o roteiro, torna a história algo que vai além de um gênero.

Baseado no livro de Jonathan Ames, também produtor do filme, você nunca esteve realmente aqui, foi premiado no Festival de Cannes e, desde sua exibição nas telas do balneário francês, virou comentário entre críticos e espectadores.

Agora, que ele chega finalmente aos cinemas brasileiros (*), todo o burburinho se confirma em uma hora e meia inesquecível, onde estamos o tempo todo grudados em Joe, mais uma interpretação magnífica de Joaquin Phoenix, um ex-soldado que tornou-se matador de aluguel.

O motivo? Não sabemos ao certo, mas os flashbacks, que duram segundos, diga-se de passagem, nos fornecem informações que remetem a uma infância complicada e também alguns traumas de guerra. Só por esta sinopse somos, quase no automático, a lembrarmos de Taxi Driver.

Porém, Joe pouco se assemelha ao clássico Travis Brickle. Sua revolta com as injustiças do mundo é um processo de redenção mais denso que o do motorista de táxi que passa as madrugadas pelas ruas de Nova York. Ao invés de provocar a própria imagem no espelho, Joe rasga a própria carne.

Como já era perceptível em seus filmes anteriores, como o ótimo O Lixo e o Sonho, Ramsay gosta de filmar o corpo e suas marcas, sem poupar gotas de suor, lágrimas e sangue. Muito sangue. Só não espere fontes vermelhas brotando de jugulares. Você nunca esteve realmente aqui é um filme de pele e cortes, onde a câmera se demora nas cicatrizes e hematomas de Joe e seus parceiros de cena.

A violência, que em outras circunstâncias e pelo próprio ritmo inicial do filme poderia ser explícita o tempo todo, se mostra mais impactante quando registrada com sutileza, como na ótima sequência em que acompanhamos a carnificina realizada por Joe e seu martelo antes de resgatar a adolescente Nina de uma casa onde é mantida como escrava sexual. Ao invés dos golpes em close, observamos tudo pelas câmeras de segurança do local. É forte justamente por ser silencioso, sem cor e à distância.

Há quem reclame que o filme demore para engrenar e haja um esforço da direção para apresentar Joe como um homem perigoso. É natural que nosso primeiro instinto seja compreendê-lo como um assassino brutal, mas os letrados em cinema de ação vão encontrar nas nuances propostas por Ramsay que Joe é mais vulnerável do que parece e, por mais preciso que seja com socos e martelos, não sabe lidar com as próprias memórias.

Pagar as contas trabalhando com a morte parece uma espécie de terapia, que fica mais forte com a chegada de Nina. Se a garota lembra a Matilda de Natalie Portman em O Profissional, é apenas mais uma referência entre tantas que surgem ao longo do filme para adornarem uma história original e angustiante. Como respirar dentro de uma sacola até perder o fôlego. Assista e experimente.

Você Nunca Esteve Realmente Aqui (You Were Never Really Here)

Ano: 2017

Direção: Lynne Ramsay

(*) O filme estreia hoje no Brasil e Santa Maria fica mais uma vez de fora. Triste ver que nossas salas de exibição só possuem espaço para blockbusters e não pense em quem não vive só de super-heróis na tela grande.