Ficção Oficial – por Bianca Zasso
Há uma doce ilusão nos corações de algumas pessoas que diz que estar bem-informado requer ler jornais, assistir TV, ouvir rádio e, mais recentemente, acessar a internet. Não que essas atitudes não sejam necessárias para descobrirmos o que está acontecendo no mundo. Mas se houve uma coisa que a faculdade de jornalismo me ensinou foi que, mais que folhear páginas, impressas ou digitais, é preciso estar atento ao que acontece ao nosso redor.
As conversas nos cafés, o papo da dupla de aposentados no banco da praça, a troca de segredos do casal no ônibus. É aí que mora a melhor informação: em gente de carne e osso. Não podemos saber se a Netflix está a par dos acontecimentos do nosso país, mas seu catálogo recebeu um exemplar vindo dos nossos hermanos que cai como uma luva para entender o clima dos últimos meses.
A História Oficial, do diretor argentino Luis Puenzo, arrebatou o público na época de seu lançamento, em 1985, e foi a segunda produção latino-americana a ganhar um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A história nos é contada sob o ponto de vista de Alicia, uma professora de história, após a queda do regime militar.
Parece a protagonista perfeita para uma trama sobre lutas e discussões políticas. Mas Alicia não é nem contrária, nem defensora da ditadura, mas um fantasma que circula entre as aulas que ministra, os cuidados com a filha e em acompanhar o marido empresário em compromissos como jantares e festas. Uma mulher que acredita no que está nos livros, sem contestar, e que ensina essa forma de ver o mundo para seus alunos.
Uma alienada que frequentou os bancos escolares. É assim que somos apresentados à Alicia. Óbvio que percebemos que algo vai arrancá-la deste torpor. Mas o que seria? Se uma mulher que trabalha com fatos e datas não desconfia que há sujeira embaixo do tapete, há que se apelar para o lado emocional.
A volta do exílio de uma amiga traz de presente para Alicia a revelação de invasões de casas, sequestros, desaparecimentos e sessões de tortura. O modo como Puenzo coloca na tela essa primeira transformação de Alicia deu origem a uma das cenas mais tocantes de A História Oficial.
Após alguns drinks e gargalhadas sobre o passado, Ana, interpretada por Chunchuna Villafañe, vai aos poucos contando como foi torturada e se viu obrigada a deixar seu país. Os risos que emolduram uma amizade dão lugar à lágrimas. Alicia, em choque, descobre os porões da ditadura argentina por uma boca confiável.
O que se segue é uma série de perguntas, inclusive sobre a origem de Gaby, filha adotiva de Alicia. Aquele bebê que chegou pelas mãos do marido, sem muita explicação, seria filho de algum preso político? A fé também é colocada à prova. Estaria a igreja que ela e a família frequentam com afinco também envolvida nos acontecimentos que o jornal publicava com falhas? O marido com quem ela divide a vida há tantos anos teria segredos?
É como se Alicia despertasse de um sono profundo. A trilha dá um tom operístico ao filme e isso não é à toa. A vida é uma tragédia dolorosa e as metáforas visuais que Puenzo usa são respiros para o espectador. Tentamos ver beleza no licor derramado e na criança que brinca de boneca. Mas sabemos que é apenas um disfarce para o soco no estômago que virá na cena seguinte.
A ótima sacada da direção de arte, que usa o cabelo da personagem para simbolizar suas mudanças, é um complemento para a fotografia de Félix Monti e seus tons sóbrios. A vida perfeita da burguesia argentina continua intocável, mas a rebeldia das madeixas de Alicia não pode ser contida.
O olhar poderoso da atriz Norma Aleandro, que começa perdido, numa quase referência às protagonistas dos melodramas de Douglas Sirk, termina incrédulo. Alicia, a mulher que conhecia e perpetuava a história oficial presente nos livros, enfim tinha diante de si a verdadeira história. Sem heróis, mas com muitos desaparecidos.
Descobrir que existe uma farsa dentro da própria casa é um baque, mas ninguém está livre de passar por isso. Do mesmo modo que houve pânico quando Orson Welles interpretou um trecho de Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, em um programa de rádio, podem existir senhorinhas respeitáveis que tornam verdade tudo que surge nas telas de seus celulares. Hoje, mais que saber esconder, existe quem se dedica a mostrar apenas o necessário para obter resultados.
Há quem diga que A História Oficial é um roteiro falho, que jamais uma professora de história desconheceria as atrocidades da ditadura. Mas eu e você não conhecemos cidadãos acima de qualquer suspeita que espalham aos quatro ventos informações de grupos de whatsapp e ai de quem duvidar da veracidade do que eles dizem? Que usam a desculpa da aposta em um país mais justo para esconder que não conseguem suportar o fato de alguém mais pobre do que eles ter acesso ao conhecimento? Que vivem ocupadíssimos verificando e opinando sobre a vida sexual alheia? Que não conseguem entender como alguém pode ter uma realidade diferente da sua e ser muito feliz? Como assim?
Daria uma boa ficção, não é? Pena que a realidade se prontificou a escrever primeiro.
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