Dois cristianismos
Por LUCIANO DO MONTE RIBAS (*)
Sou ateu, não escondo de ninguém, mesmo nesses dias de intolerância e violência. Ao mesmo tempo, culturalmente sou cristão, pois fui educado sob essa tradição e dela absorvi uma série de valores que ajudam a orientar a minha vida. Ou seja, para mim é perfeitamente compatível afirmar que divindades são criações humanas e, ao mesmo tempo, admirar aspectos das religiões ou os simbolismos e ensinamentos de algumas figuras importantes para elas. Creio que o pensamento livre das amarras dos dogmas têm essa qualidade ímpar de nos levar à aceitação, à convivência e ao aprendizado – ou, ao menos, nos faz tentar torná-los reais.
Dentro desse espírito, assisti ao longa-metragem “Dois Papas”, de Fernando Meirelles, onde Ratzinger e Bergoglio servem como amálgamas das grandes facções que disputam o poder na Igreja Católica há algumas décadas.
Sem entrar no que é fato e no que faz parte das liberdades tomadas em um roteiro bem escrito, os elementos essenciais do que podemos chamar de “dois cristianismos” estão presentes nos diálogos entre os protagonistas, bem como as contradições que ambos carregam após terem exercido cargos de relevância na estrutura da Igreja.
A história do atual papa, porém, é mais evidente no filme. Vemos as polêmicas e contestações que envolvem sua postura à frente dos jesuítas durante a ditadura militar na Argentina, mas tomamos contato também com o processo que o fez aderir à ideia de que a igreja de Cristo deve abraçar a causa dos pobres e dos excluídos. O que rapidamente me leva a Dom Helder Câmara, bispo brasileiro e grande humanista, referência para os religiosos latino-americanos.
Na sua maturidade, Dom Hélder, arcebispo emérito de Olinda e Recife, não teve medo de enfrentar os ditadores e seus aliados. Depois de abandonar o integralismo, corrente fascista com discurso anticapitalista com a qual se envolveu na juventude, fez de sua relação com a humanidade uma tradução da essência do cristianismo inclusivo, revolucionário e solidário existente nas comunidades primitivas. Isso fica evidente no questionamento que ele faz sobre a origem da pobreza: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista.”
Nem santo, nem comunista, Dom Helder representava uma fé conectada com o mundo, presente nas angústias concretas das pessoas e disposta a modificar, à sua maneira, a realidade. Uma crença consciente de que a caridade pode ser satisfatória para o ego de alguns e, emergencialmente, necessária, mas que jamais deixará de ser a prima hipócrita da solidariedade.
Nesses tempos em que a fé é uma mercadoria e serve de escudo para a ignorância dos novos fascistas, Dom Helder precisa ser lembrado por todas as pessoas que não aceitam a intolerância, a desumanidade e a perversidade do deus-mercado. Que, sob a inspiração do “Arcebispo Vermelho”, 2020 nos traga clareza e força para virar o jogo e começar a construir a derrota dos inimigos da humanidade.
(*) Luciano do Monte Ribas é designer gráfico, graduado em Desenho Industrial / Programação Visual e mestre em Artes Visuais, ambos pela UFSM. É um dos coordenadores do Santa Maria Vídeo e Cinema e já exerceu diversas funções, tanto na iniciativa privada quanto na gestão pública.
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OBSERVAÇÃO DO EDITOR: A foto é de vendedoras de rosários em frente a Catedral Metropolitana, em Santiago do Chile.
Você parece ser um homem de pouca fé, João Agripino…
Andar COM fé eu vou, que a fé não costuma falhar.
Ter fé e assumir, está sendo visto como feio.
Legal é ser ateu, até apelar para Ele.
Ateu? Sei.
Na hora do aperto vai rezar e a desculpa é a formação Cristã.
Sei.